Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, outubro 03, 2010

Confusão jurídica

A CISÃO do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento sobre a possibilidade de aplicação da Lei da Ficha Limpa no caso da candidatura do ex-senador da República, Joaquim Roriz (PTC-DF), ao governo do Distrito Federal (DF), é mais uma amostra das dificuldades que o País enfrenta para moralizar a vida pública. Como 228 candidatos de 25 partidos tiveram o registro impugnado pela Justiça Eleitoral, no início daquela sessão do STF, os ministros resolveram que a decisão a ser dada ao recurso de Roriz valeria para todos os casos.

ENTRETANTO o plenário daquela Corte não conseguiu chegar a uma decisão de mérito. Com base no princípio da moralidade, cinco ministros entenderam que a Lei da Ficha Limpa poderia ser aplicada no pleito deste Domingo, 03. E, sob a justificativa de que não poderia ter sido aprovada em ano eleitoral, outros cinco alegaram que ela só pode gerar efeitos em 2012.

RESULTANTE de um projeto de origem popular, com mais de 1,5 milhão de assinaturas, a Lei da Ficha Limpa é um marco na luta contra a corrupção e a impunidade no País. Entre outras restrições, a lei proíbe a candidatura de pessoas com condenação criminal por decisão colegiada da Justiça.

PORTANTO, quando a Lei entrou em vigor, em 04 de Junho último, políticos sem biografia, mas com prontuário policial e um rol de condenações judiciais, bateram nas portas dos tribunais para saber se ela atingiria candidatos já condenados ou se seria aplicada apenas para quem fosse condenado a partir daquela data. Dos candidatos impugnados pela Justiça Eleitoral, Roriz foi o primeiro a levar o caso ao STF.

TENPORARIAMENTE funcionando com dez magistrados, por causa da aposentadoria do ex- ministro Eros Grau, o plenário do STF ficou dividido entre dois princípios - o da moralidade pública, por um lado, e o da segurança jurídica, que exige respeito ao processo legislativo, por outro. O empate gerou um quadro de incerteza jurídica e a falta de uma decisão judicial se converteu na pior decisão para o cenário político-eleitoral.

O REGIMENTO interno daquela Corte prevê três possibilidades para o desempate. A primeira alternativa seria esperar a nomeação do ministro que ocupará a vaga aberta pela aposentadoria do ministro Eros Grau. A segunda alternativa seria o presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, usar a prerrogativa de seu "voto de Minerva". A última possibilidade determina que, com o placar empatado, o pedido seja negado.

CONTUDO essas três possibilidades são inviáveis. No primeiro caso, não há tempo útil para a indicação de um novo ministro e também não faz sentido suspender os julgamentos da Justiça Eleitoral até que o STF volte a contar com 11 magistrados. No caso do duplo voto do presidente da Corte, Peluso, que se pronunciou a favor de Roriz, abdicou dessa prerrogativa, alegando que "não tem vocação para déspota". Ele agiu com sensatez pois, como já havia se pronunciado a favor de Roriz e o "voto de Minerva" acabaria beneficiando políticos já condenados por corrupção, isso acabaria provocando grandes discussões políticas e institucionais às vésperas da eleição. E, no caso da terceira possibilidade, a negação do recurso impetrado por Roriz deixaria órfão quem bateu às portas do Poder Judiciário pedindo uma solução judicial para seu caso. Mas, advertido por seus advogados, ele substituiu sua candidatura ao governo do Distrito Federal pela candidatura da esposa. Isso aumentou ainda mais a confusão jurídica, pois alguns ministros do STF acham que o recurso por ele impetrado se extinguiu, enquanto outros entendem que, com base no princípio da repercussão geral, deveriam julgá-lo no mérito antes desta eleição de hoje.

É MUITO difícil saber que caminho o plenário do STF vai escolher diante do impasse. O que os ministros daquela Corte não podem é deixar o caso sem uma solução, qualquer que seja seu teor. Isso deixaria a Justiça Eleitoral desamparada pela Corte constitucional que tem a prerrogativa de dar a última palavra nas decisões fundamentais do País. Não se pronunciando, o STF ampliou ainda mais a confusão jurídica reinante neste processo eleitoral.

Acadêmicos da mordaça

O DESEMBARGADOR Liberato Póvoa, magistrado da Justiça eleitoral em Tocantins (TO) - cuja mulher e sogra foram nomeadas pelo governador Carlos Gaguim (PMDB-TO) para cargos na administração local -, impôs censura prévia a 8 jornais, 11 emissoras de TV, 5 sites de notícias na Internet, 20 emissoras de Rádio comercial e 40 emissoras de Rádio comunitária. Sob pena de multa diária de R$ 10 mil, todos esses veículos de comunicação de massa estavam proibidos de divulgar informações sobre a investigação do Ministério Público (MP) de São Paulo a respeito de uma suposta organização criminosa que teria fraudado licitações em 11 prefeituras do Estado de São Paulo e do Estado de Tocantins. Os valores desviados somariam R$ 615 milhões. As investigações do Departamento de Polícia Federal (DPF) levaram a ligações do governador Gaguim e do procurador-geral do Estado do Tocantins, Haroldo Rastoldo, com aquele bando. Oito dos seus integrantes tiveram a prisão preventiva decretada.

O GOVERNADOR Gaguim, candidato à reeleição pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), é tido como padrinho político do lobista da quadrilha, Maurício Manduca. Ele foi o primeiro a ser preso, por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro ilícito. Outra figura central do esquema, também preso, é o empresário José Carlos Cepera. Segundo um representante do MP ouvido pela nossa reportagem, Gaguim teria "íntimas relações" com eles. Gravações telefônicas autorizadas revelam que o governador teria intercedido diretamente em favor das empresas de Cepera em licitações no Tocantins. As reportagens sobre esse escândalo foram usadas na campanha eleitoral do candidato oposicionista (e ex-governador) Siqueira Campos (PSDB-TO).
AO ACIONAR a Justiça Eleitoral, a coligação de 11 partidos, entre os quais o Partido dos Trabalhadores (PT), que apoiam Gaguim alegou que o noticiário sobre a investigação favorece o candidato oposicionista, "constituindo, pois, uso indevido dos meios de comunicação". Ao acolher a queixa, o desembargador Póvoa assinalou que a investigação corre em segredo de Justiça e argumentou que as informações que presumivelmente incriminam o governador foram publicadas depois do furto de um microcomputador. O equipamento continha os arquivos da operação que revelou os laços entre Manduca e Gaguim. O magistrado, além de considerar "difamatórias" as menções ao governador, afirmou que foram obtidas por "meio ilícito".

ESSA suposta relação de causa e efeito é fictícia. O furto ocorreu na Quinta-feira, 23 - cinco dias depois que o Jornal O Estado de S. Paulo (o Estadão) começou a noticiar o caso. Tampouco se sustenta a responsabilização da imprensa pela divulgação de dados de uma apuração que tramita em sigilo. A guarda do segredo cabe aos agentes públicos envolvidos nas investigações enquadradas nessa categoria. Aliás, a estranha frequência com que processos são blindados - o que obviamente favorece os suspeitos, em prejuízo do direito da sociedade de saber o que autoridades e negociantes fazem com o dinheiro do contribuinte - é um motivo a mais para os veículos de comunicação de massa tornarem público o material a que tiveram acesso.

A INVOCAÇÃO do sigilo para preservar a intimidade dos investigados é uma manobra que produz resultados, quando são apresentados a determinados juízes que melhor fariam se se declarassem suspeitos de entrar na querela. Dácio Vieira, o desembargador da Justiça do Distrito Federal (DF) que há 424 dias impediu o mesmo Jornal Estadão de publicar notícias sobre o inquérito do DPF a respeito dos possíveis ilícitos praticados pelo empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente da República (1985-90), e atual presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, senador José Sarney (PMDB-AP), não só foi consultor jurídico do Senado Federal, como mantém relações próximas com o chefe do clã maranhense. Por sua vez, Liberato Póvoa, o colega do Tocantins que resolveu imitá-lo, tem dois familiares no governo Gaguim. A mulher, Simone Póvoa, na Secretaria de Estado da Justiça, e a sogra, Nilce, na Secretaria de Estado do Trabalho e do Emprego.

TODA essa mordaça aplicada por atacado pelo desembargador da Justiça em Tocantins - que responde a processo no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por venda de sentença - foi recebida com espanto e protestos. "Quando se proíbe a divulgação de informações baseadas em fatos, está se ferindo o preceito constitucional de garantias ao Estado de Direito", alertou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante. "É preciso repudiar essas atitudes". Pergunta, de seu lado, o jornalista e Professor-Adjunto do Departamento de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP), Eugênio Bucci: "O que impede que amanhã toda a imprensa seja censurada?"

NA tarde da última Segunda-feira, 27, o plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Tocantins (TRE-TO) derrubou a decisão do desembargador Póvoa.