Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, outubro 29, 2012

O Estado privatizado

EM ofício que enviou à Federação Internacional de Futebol (Fifa) em junho de 2007, na ocasião da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de Fifa em sua edição de 2014, o então presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), informou que o seu governo (2006-10) aprovaria ou solicitaria ao Congresso Nacional "todas as leis, decretos, portarias ou regulamentos nacionais, estaduais e municipais" que fossem necessários para "assegurar o cumprimento de todas as garantias governamentais emitidas para garantir o sucesso das competições".



NAQUELA época, o governo Luiz Inácio da Silva foi criticado por negociar questões de soberania com um órgão internacional privado, abrindo caminho para a aprovação de leis que contrariariam a Constituição Federal do Brasil, principalmente em matéria de segurança pública, privilégios para os parceiros comerciais da Fifa e renúncias fiscais.



APESAR das críticas, o governo também se comprometeu a conceder "poderes especiais" aos burocratas da Fifa e visto de entrada sem qualquer restrição a todos os clientes da entidade. O governo petista prometeu ainda revogar a obrigatoriedade de mandado judicial para a apreensão de materiais considerados "suspeitos" de pirataria e outras "violações", segundo a Fifa, e constituir direitos de exclusividade comercial para a entidade de direito privado. Concessões semelhantes foram feitas ao Comitê Olímpico Internacional (COI), em troca da realização da Olimpíada em 2016 no Rio de Janeiro (RJ).



CINCO anos depois da remessa do ofício assinado por Luiz Inácio da Silva, vê-se que a abdicação de soberania não se limitou aos termos da Lei Geral da Copa. Parte das funções da máquina governamental também está sendo privatizada, com a delegação de competências exclusivas da União para entidades como o Rio 2016 - o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de 2016, que entrou em vigor em Junho último.



A MEDIDA Provisória (MP) 584 autoriza essa privatização. Editada no último dia 10, para regulamentar os grandes eventos esportivos que o Brasil sediará, ela subverte os princípios da legislação tributária brasileira. Entre outras concessões absurdas, esta MP permite que órgãos alheios à União possam definir as pessoas físicas e jurídicas que serão agraciadas com isenção fiscal. Com isso, a MP 584 transferiu prerrogativas que, pela legislação tributária, são da Secretaria da Receita Federal (SRF), vinculada ao Ministério da Fazenda (MF). A MP 584 também não definiu, com clareza, os critérios que serão usados para a concessão de isenções, limitando-se a afirmar que os beneficiários terão de entregar "documentação fiscal idônea".




ALÉM de configurar um absurdo jurídico, uma vez que afronta a Constituição Federal do Brasil, essa transferência de prerrogativas é uma porta aberta para favorecimentos espúrios, trocas de favores e pressões políticas. Basta ver que, no dia seguinte à edição da MP 584, as bancadas fluminenses no Congresso Nacional começaram a se articular para tentar ampliar o "leque de beneficiários" com isenção de tributos federais. O senador Francisco Dornelles (PP-RJ), por exemplo, propôs que ela seja estendida à importação de cavalos, armas brancas e embarcações à vela e remo. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ) pediu que a isenção fiscal prevista pela MP 584 também seja usada na Jornada Mundial da Juventude, a ser realizada no Rio de Janeiro no próximo ano.



A MP 584 apresenta três outras aberrações jurídicas. Em primeiro lugar, ela foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) sem exposição de motivos. Em segundo lugar, a publicação não foi acompanhada de estimativa de renúncia fiscal, contrariando determinação expressa da Lei de Responsabilidade Fiscal. E, em terceiro lugar, a MP 584 impôs a retroatividade à concessão de isenções fiscais - pelo artigo 27, elas passariam a valer a partir de Janeiro deste 2012. Além de ser absurdo, em termos legais, a retroação esbarra num problema prático: como pode o governo devolver impostos já arrecadados de pessoas físicas e jurídicas que se beneficiarão dos incentivos a partir de Janeiro de 2013?



ACIMA de tudo, a MP 584 viola princípios constitucionais e normas tributárias que foram amplamente debatidos, por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte em 1987/88, subordinando o Estado de Direito aos interesses empresariais de órgãos internacionais privados.