Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, março 09, 2006

Pelo vigor da arte e da festa

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELOHORIZONTE

A festa do Oscar em Los Angeles (EUA), na noite do último Domingo, não marcou, é claro, o início do fim dos tabus em Hollywood. O processo já vem de bastante tempo — mas foi uma eloqüente celebração da derrota dos fariseus. Aquela noite de gala encerrou-se com o favorito não levando o mais cobiçado dos prêmios da Academia norte-americana de Cinema.

Há muito tempo não se via uma zebra tão grande. A derrota de “O segredo de Brokeback Mountain” para “Crash — No limite” foi mais do que uma surpresa. Foi um espanto. Se era para não dar para “Brokeback”, por que o Oscar não foi para “Boa noite e boa sorte”? Ou para “Capote”?...“Munique”, convenhamos, nem pensar.

Há uma teoria de que o Oscar de “Crash” foi a vitória da Cientologia. Como todo o mundo sabe, Cientologia é a religião esquisita de gente como os astros John Travolta e Tom Cruise. Mas Travolta e Cruise são apenas os nomes mais famosos de uma crença que, pelo jeito, domina Hollywood. Paul Haggis, o diretor de “Crash”, também é um de seus adeptos. E a votação em massa no seu filme mostra que há mais cientologistas em Hollywood do que a gente imaginava. Pode ser.

Mas pensando bem, o triunfo de “Crash é a vitória do filme que, até 20 dias atrás, era o patinho feio dos indicados e isso fez bem a história da Academia. Uma entrega de prêmios que só prestigia os favoritos acaba se tornando monótona. O show de Domingo passado estava assim. Até ser anunciado o prêmio principal da noite.” Crash “na cabeça revigorou uma fórmula que parecia a meia bomba. A cerimônia que de início parecia ser a mais enfadonha de todos os tempos acabou entrando para a História.

Eu sei que já foi ideologicamente correto falar mal do Cinema norte-americano. Anos atrás a mídia internacional denunciava, se bem lembro o discurso, uma campanha ideológica manobrada pelos yupes de Wall Street e a Casa Branca para fazer a propaganda das virtudes imbatíveis do modo norte-americano de viver (o american way of life).

Todos os filmes de guerra eram patrióticos — o que fazia bastante sentido quando o inimigo era o nazismo. Mas veio a guerra fria, na qual o Cinema também se prestava à defesa do establishment em quaisquer circunstâncias.

Durante boa parte do século passado, Hollywood também era uma velha dama puritana. Durante muito tempo, até marido e mulher dormiam em camas de solteiro, separados por uma vigilante mesa de cabeceira. E o sexo fora do casamento não escapava sem punição. Os atores negros se dividiam entre pacíficos velhinhos contadores de histórias e cômicos careteiros. E grande número dos vilões era recrutado em outros ninhos étnicos.

E havia censura, não oficial, mas gerenciada pelos próprios estúdios. Por vontade própria, por pressão do governo e por medo da Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara de Representantes, primeiro, e logo depois pelo macarthismo (cujo quartel-general era no Senado da Federal, especificamente na Comissão sobre Ações Governamentais, cujo braço armado, era a Subcomissão Permanente de Investigações).

Anos depois da morte de McCarthy, o controle sobre a pureza étnica e ideológica de Hollywood era mantido, inclusive por vontade própria dos donos dos grandes estúdios. Durante quase toda a guerra do Vietnã, produzir filmes sobre o conflito era tabu, com a solitária exceção, se não falha a memória, de “Green Berets”, saga patriótica estrelada pelo infalível herói John Wayne. Do qual, pessoalmente, ninguém conseguia não gostar. Nestas bandas, não faltava quem tivesse um pôster de Che Guevara na parede e um lugar no coração para o Wayne dos velhos westerns.

As coisas mudaram devagar, mas mudaram. A decadência de muitos dos grandes estúdios abriu caminho para produções e diretores independentes, e capazes de fazer filmes tão rendosos como corajosos. Talvez por terem saído de moda as sentinelas do patriotismo e da decência.

O belo filme de George McClooney sobre o macarthismo nada ganhou, mas estava entre os indicados em mais de uma categoria. Os prêmios dados a “Capote” e “O segredo de Brokeback Mountain” reconheceram o valor de obras que tratam o homossexualismo com uma dignidade e uma seriedade que um dia foram impensáveis.

É exagero dizer que assistimos ao apogeu de processo de amadurecimento da indústria. Mas a entrega do Oscar, no último Domingo, foi com certeza uma prova de que o Cinema norte-americano está cada ano levando-se mais a sério, e ao seu público.

Ainda dá para ter saudades do velho Wayne, mas vai daqui o meu discreto cumprimento aos astros, diretores e produtores de Hollywood, sobretudo os eleitores da Academia. Por bom comportamento em cena.