Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sexta-feira, agosto 07, 2009

Ausência registrada

RIO DE JANEIRO - SABE o que o saudoso vocalista da banda Nirvana, Kurt Cobain, pensava do futuro da música no universo tecnológico? Bom, ele se preocupava mais com a perda do instinto básico do rock. Os garotos fazem música em "máquinas de realidade virtual", ele ponderou, e até que isso é bacana, mas a música não tem alma. Vai atender a necessidades de consumo - depois, eles saem para uma festa ou para comer, e a vida não muda. "Um dia, eles serão encontrados mortos no sofá de uma overdose de realidade virtual", afirmou.

A DECLARAÇÃO é uma das muitas reflexões do líder da banda Nirvana no documentário “Kurt Cobain - Retrato de Uma Ausência” (About a Son), dirigido por AJ Shnack, que estreou no circuito comercial de Cinema do País no último fim de semana. O filme tem o próprio cantor como narrador involuntário a partir de depoimentos que ele deu ao jornalista Michael Azerrad, entre 1992 e 1993, em sua casa em Seattle (EUA), sempre por volta da meia-noite (houve papos também por telefone). Azerrad já tinha lançado os depoimentos em forma de livro, havia três anos.
ESTE filme é talvez o mais ousado documentário sobre música em décadas. Não traz nem uma música do Nirvana, apenas as que emolduram a formação do compositor. Não há nem uma imagem de Kurt, e apenas dois pedaços de fotos de Dave e Chris, seus parceiros do Nirvana. Não tem mãe falando, nem pai, nem fãs, nem ex-namoradas, nem ex-patrão, nem detetives brandindo teorias conspiratórias.
TAMBÉM, não traz nenhuma revelação picante, do tipo "ele gostava de passear à noite vestido de mulher em Times Square". Não há picos dramáticos, nem imagens que ajudem a fazer a construção heróica de um mito. O diretor Shnack tentou compreender a gênese de um artista por meio da geografia na qual ele foi engendrado.
UMA câmera passeia pelos tipos humanos de Aberdeen, onde Kurt cresceu. Passeia pela serraria onde trabalhava o pai de Kurt. Pelo playground onde brincou. Pelos lugares de onde jogava latas cheias de pedras nos carros da polícia, ainda criança. Cafés, salas de estar, sofás, velhas lojas de discos. A história de Kurt se revela pelos olhos de um velho, pela barba rala de um moleque de high school, pelo mundo adolescente de um lugar invisível. É uma perspectiva ao estilo das fotos de Diane Arbus (1923-1971).
COBAIN era um desterrado em qualquer lugar que vivesse. O exílio era parte de seu espírito. Quando ele conta sobre sua ida à cidade de Olympia, onde viveu com a namorada de então, Terry, vai-se aclarando o tamanho de sua angústia.
ISTO mostra o tamanho da consciência do músico. Talvez a passagem mais bacana sobre o filme. O pai de Cobain o espancava em restaurantes, a mãe comeu seu tablete de maconha, os amigos da escola batiam nele na aula de natação porque achavam que era gay. Em dado momento da vida, ele diz, não faria diferença se tivesse uma casa, ou se dormisse debaixo de uma ponte ou dentro de um carro. Fez isso durante meses.
COBAIN não usa nenhum de seus percalços como justificativa, apenas conta sua versão da história. O insight musical de Kurt - que sonhava misturar Black Sabbath com Beatles - era sempre rechaçado, mas não o bastante para que desistisse dele.
TAMBÉM, a trilha sonora é muito bacana: começa com Motorcycle Song, de Arlo Guthrie (a tradução inventa de rimar "chuleta" com "motoperneta"), e passa por Bad Brains, Vaselines, Butthole Surfers, Scratch Acid, Lead Belly.
KURT Cobain demonstra grande senso de humor. Diz que, já banda emergente, ele e os colegas topavam almoçar com executivos de grandes gravadoras, como Capitol, apenas para que lhes pagassem jantares. Não tinha a menor intenção de aceitar suas propostas. Ri e faz rir ao lembrar de como achava que sua mulher, Courtney, se parecia com Nancy Spungen, a groupie de Syd Vicious.
COBAIN diz que de repente passou a se dar conta de que a carreira de vocalista da banda Nirvana tinha virado um emprego. Que tudo que queria na vida era voltar atrás, ao exato momento em que a fama era apenas um bafejo delicado no seu rosto, com uma dúzia de pessoas na platéia. O filme termina com Courtney Love pedindo a Kurt Cobain para que ele, quando subir, traga uma mamadeira para a filha. Ele lhe responde docemente que sim. Um ano depois, daria um tiro na cabeça. Veja o trailer do filme
Serviço
Kurt Cobain - Retrato de Uma Ausência (Kurt Cobain: About a Son, EUA/2006, 96 min.) - 14 anos. Cotação: Ótimo
Trilha Sonora
STEVE FISK & BENJAMIN GIBBARD - Overture
ARLO GUTHRIE - Motorcycle Song
MELVINS - Eye Flys
BAD BRAINS - Banned in D.C.
CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL - Up Around The Bend
HALF JAPANESE - Put Some Sugar On It
THE VASELINES - Son of a Gun
BUTTHOLE SURFERS - Graveyard
SCRATCH ACID – Owner’s Lament
MUDHONEY - Touch Me I'm Sick
IGGY POP - The Passenger
LEAD BELLY - The Bourgeois Blues
R.E.M. - New Orleans Instrumental No. 1
DAVID BOWIE - The Man Who Sold the World
MARK LANEGAN - Museum
BENJAMIN GIBBARD - Indian summer