Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, outubro 04, 2005

A desprezível hegemonia
WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Mesmo o governo tendo conseguido impor a candidatura do deputado alagoano Aldo Rebelo (PcdoB-SP) no segundo turno para presidir a Câmara dos Deputados, foi uma derrota política tamanho o fisiologismo explícito para ficar nas mãos do baixo clero parlamentar e vencer ela minúscula diferença de 15 votos. A tática das lideranças do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Progressista (PP) de manter seus candidatos mesmo sem condições de vitória, apenas para ganhar cacife político diante do governo Luiz Inácio da Silva (2003-06), deu certo.

Donos de mais de cem votos, os dois partidos foram assediados por vários ministros de Estado no intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições da presidência da Câmara dos Deputados na última Quarta-feira, 28, e negociaram bem seus apoios. Há indicações de que entraram na negociação uma “boa vontade” com os processos dos deputados envolvidos nas denúncias de corrupção.

O fato de Rebelo ter sido testemunha de defesa do ex-todo-poderoso ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República José Dirceu (PT-SP) pode ser apontado como exemplo de que ele não teria distanciamento necessário para presidir os processos de cassação. De nada adianta o deputado Aldo Rebelo ser um político com a folha corrida limpa, se aceitou o jogo e foi eleito com a adoção de métodos “não republicanos”. Ele terá uma tarefa adicional na presidência da Câmara dos Deputados: não deixar dúvidas sobre o rigor dos procedimentos nos processos de cassação dos deputados acusados de corrupção no escândalo do valerioduto que abasteceu o mensalão.

O oferecimento do Ministério da Educação (MEC) para o PP em troca dos pouco mais de 70 votos que o deputado Ciro Nogueira (PP-PI) recebeu no primeiro turno, ou para o PL, que apoiou Aldo Rebelo logo no primeiro turno, só o fato de que os partidos tenham tido espaço para reivindicá-lo é uma prova do quanto o governo Luiz Inácio da Silva leva em conta o projeto educacional deste País, que já foi das principais bandeiras do Partido dos Trabalhadores (PT). Os percalços dos ministros da Educação até hoje mostram quais são as prioridades do governo.

Estamos assistindo a desconstrução de um partido que nasceu para fazer política de maneira diferente da tradicional e, chegando ao poder com o auxílio de métodos escusos, entregou-se ao mais abjeto fisiologismo, levando ao paroxismo os mesmos costumes políticos que condenava e pretendia reformar.

O recém-criado PSOL, nascido de uma dissidência do PT, parece trilhar o mesmo caminho de radicalização que dominou o PT no seu início: decidiram não votar, por considerarem que a eleição estava maculada pela intervenção do Executivo. O mesmo erro que o PT fez, por exemplo, ao não participar do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo de Almeida Neves presidente da República em 1984.

Mas, mais grave que isso, assistimos nos últimos tempos à desconstituição da democracia brasileira, na medida em que o Executivo, para impor suas vontades ao Legislativo, usa a corrupção e a troca de favores para transformar esse poder em mero caudatário de suas decisões.

Desconstituir é tirar poderes outorgados, é o desfazimento da construção jurídica, ensina o dicionário político. É isso que o vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) vem fazendo sistematicamente, a partir do momento em que decidiu formar sua maioria parlamentar através do mensalão concretizado através do valerioduto, comprando literalmente apoios no Parlamento, em vez de negociá-los politicamente.
Mesmo depois de todas as denúncias, de todas as confissões já feitas, de todo o ambiente de infâmia implantado no Legislativo, o governo não se pejou de adotar os mesmos mecanismos na negociação para a presidência da Câmara dos Deputados.

Negociar a redução das cláusulas de barreira com os pequenos partidos, na maior parte envolvidos nas negociatas do mensalão e na distribuição de cargos federais, é trocar votos pela desorganização partidária, que favorece o exercício do poder sem fiscalização.

Com a adoção das cláusulas de barreira nas próximas eleições, vários desses partidos que venderam seus votos em troca de dinheiro não terão atuação parlamentar, e com isso perderão espaços de negociações.

A eleição para a presidência da Câmara dos Deputados mostrou que o governo já não pode contar com sua base parlamentar, hoje mais virtual do que real. A cada votação importante, a cada decisão que necessitar do apoio da Câmara dos Deputados, o governo terá que negociar separadamente com cada grupo, com cada facção de partidos que não têm nenhum tipo de compromisso com programas, e nem posições definitivas sobre nada.
A situação do PL é exemplar: formou a chapa com o PT, indicando o então senador José Alencar Gomes da Silva para vice-presidente na eleição de Luiz Inácio da Silva em 2002 depois de uma tenebrosa transação que resultou em R$ 10 milhões pagos com dinheiro do caixa dois, canalizados pelo valerioduto. Depois de toda crise política desencadeada pelas denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), o partido decidiu com alarido ir para a Oposição, comandado pelo seu presidente, o ex-deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP), que teve que renunciar para não perder o mandato pela cassação em plenário.

Agora, na última Sexta-feira, 30, o vice-presidente José Alencar Gomes da Silva saiu do PL para poder continuar fiel ao governo do presidente Luiz Inácio da Silva, e agora se vê na situação de ter o Ministério da Defesa, do qual é titular, exigido de volta pelo seu ex- partido, que voltou à base do governo às custas de verbas e outros favores, negociados em apóio à eleição de Rebelo. O fisiologismo teve tanto poder na campanha da presidência da Câmara dos Deputados que ministros de Estado negociaram apoios em reuniões de bancadas sem nenhum embaraço.
E até mesmo os candidatos finalistas usaram em seus discursos, embora de maneira indireta e com elegância, os apelos que fizeram do ex-presidente Severino Cavalcanti (PP-PE) o preferido da maioria naquela Casa: acenaram com viagens internacionais, falaram em aprovação de emendas, criticaram os que chamam os deputados menos visíveis de baixo clero parlamentar.
O historiador norte-americano Henry Brook Adams cunhou a definição de prática política como sendo a arte de “ignorar fatos”, especialidade em que os governistas vêm se qualificando nos últimos tempos, especialmente o presidente Luiz Inácio da Silva. Ele ignora as várias derrotas de sua política externa, para exibi-la como uma vitória transformadora de seu governo.

Agora mesmo, ao dizer que não há país mais democrático do que a Venezuela do seu companheiro general Hugo Chávez, Luiz Inácio da Silva não fez mais do que repetir o grande dramaturgo Nelson Rodrigues que, atualizando a máxima de Brook Adams, definiu: “Se os fatos não combinam com minha visão, pior para os fatos”.

Essa seria, no entanto, apenas uma ignorância a mais do vosso presidente da República se não explicitasse uma perigosa visão de democracia com a qual ele volta e meia flerta. A democracia plebiscitária e direta com a qual Chávez manipula os poderes constituídos e divide a sociedade venezuelana. Luiz Inácio da Silva volta e meia dá demonstrações de que não leva muito a sério a liturgia do cargo. Seja quando admite como normal o uso de caixa dois nas eleições, seja quando recebe em seu palanque o líder baderneiro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) José Rainha Júnior que, segundo palavras do próprio presidente da República, “de vez em quando é preso mas é meu amigo”.

No terreno dos conceitos sobre política, o pragmático filósofo comunista G.V. Plekhanov, ativista político russo morto em 1918, logo depois de ver vitoriosa a Revolução Russa, pode ser uma boa citação no momento em que chega à Presidência da Câmara o deputado alagoano Aldo Rebelo, alcançando o mais alto posto a que um membro do Partido Comunista do Brasil (PcdoB) já atingiu na História do Brasil, como festeja o site do partido na web. Disse Plekhanov: “Política necessita uma mente flexível, por isso não existem regras imutáveis ou eternas. Elas levam a derrotas inevitáveis”.

Foi mais ou menos o que disse Rebelo logo depois de eleito, querendo mudar as regras eleitorais para o próximo pleito, cumprindo assim um acordo tácito com os partidos clientes do mensalão e do valerioduto — PL, PP e PTB — que ajudaram na sua eleição em troca do fim da cláusula de barreira, entre outros favores. Rebelo, com aquela cara séria com que ele diz a maior platitude, garantiu que tal mudança fora do prazo da legislação não seria um casuísmo. “Só seria casuísmo se a mudança interferisse nos resultados da eleição”. Como não interfere se, livres da cláusula de barreira, os partidos não terão de fazer acordos políticos adicionais para se enquadrar na legislação? E seus filiados, que teriam de fazer um esforço extra de militância e convencimento para ajudar os partidos a melhorar seu desempenho, não teriam uma atuação diferente na campanha?

A sucessão na Câmara dos Deputados, por sinal, serviu para que uma série de afirmações políticas completamente sem sentido fossem proferidas, com ares de verdade absoluta, como por exemplo essa frase que está no site do PcdoB na web para explicar a vitória de seu representante: o confronto entre direita e esquerda teria ficado claro na “(...) polarização entre o bloco PSDB/PFL, que apoiou o deputado pefelista pernambucano José Thomaz Nonô, contra o candidato das forças democráticas, progressistas e patrióticas, representadas por Aldo Rebelo”. Quer dizer, PP, PL e PTB, os partidos clientes do mensalão e do velerioduto, representam agora as “forças democráticas, progressistas e patrióticas” do País.

É certo que o, hoje, presidente da Câmara os Deputados Aldo Rebelo não recebeu a totalidade dos votos desses partidos, mas isso não prova, como alegam os governistas, que não tenham sido cooptados pelo governo com verbas e outros favores. Quer dizer, simplesmente, que esses pequenos partidos não são confiáveis, e continuarão chantageando o governo, sempre atrás de vantagens, e não entregando toda a mercadoria que prometem, prontos para a traição.

É por essas e outras que um pequeno livro, que faz o maior sucesso nos Estados Unidos da América (EUA) e que está sendo lançado aqui no Brasil, pode ser uma leitura útil nos nossos dias. “On Bullshit”, do filósofo norte-americano Harry G. Frankfurt, chega ao País com o título “Sobre falar merda”, que soa um pouco mais grosseiro no nosso idioma, mas não menos verdadeiro. Frankfurt analisa o discurso político e diz que um dos traços mais notáveis da nossa cultura moderna é que “se fale tanta merda”. Ele vai ao ponto que nos interessa: “As áreas da propaganda e das relações públicas e, hoje em dia, a intimamente ligada área da política estão repletas de exemplos tão consumados de falar merda que podem servir como os paradigmas mais inquestionáveis e clássicos do conceito”.

Mas por que os políticos se tornaram “faladores de merda” profissionais? Harry Frankfurt tem uma teoria: “É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo. (...) Essa discrepância é comum na vida pública, em que os indivíduos são com freqüência compelidos a falar sobre questões em que são até certo ponto ignorantes”. Ultimamente somos todos testemunhas de tudo isso, principalmente nos discursos de algumas autoridades e em muitas sessões das Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs) em andamento no Congresso Nacional.