Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, novembro 13, 2005

O crepúsculo de um gênio

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Na época, 1972, ele tinha 14 anos, e sua interpretação de “Ben” tocou em todas as rádios do planeta até encher o meu saquinho. Pouco depois, não satisfeito, ele veio com a refilmagem de “O mágico de Oz” e o álbum “Off the wall”, que trazia outro tremendo hit, a canção “Rock with me”.

Não era nada perto do que estava por vir. Criança, se você ainda estava morta em 1982, não tem idéia do que foi “Thriller”. Impossível fugir da faixa-título, de “Billie Jean”, “Beat it”, “Human nature” e de “Baby be mine” e “P.Y.T. (Pretty young thing)”. É o disco mais vendido da História: 47 milhões de cópias.
O fato de ser produzido pelo maestro jazzista Quincy Jones e contar com participações do ex-Beatles Paul McCartney e do guitarrista Eddie Van Halen, o fato, enfim, de “Thriller”, vá lá, ser bom não o tornava palatável ad infinitum. Até amor em demasia enjoa. E o disco era consumido em cada esquina, elevador, academia de ginástica, rádio, graças aos clips que revolucionaram a forma dos astros da música Pop se apresentar na TV.
Todos os grandes astros da Soul Music e da Pop Music surgidos nas últimas décadas tem um quê de Michael Jackson; assistam um show de: Jenneffer Lopez (Jlo); Mariah Carey; Will Smith; Jah Rule; Whithney Houston; Lisa Stanfield; Eminen. Ele está lá. Todos os astros da música Pop mundial abaixo dos 40 anos trazem gravados na alma o traço de Jacko. Seja na modulação da voz, nos passos desconcertantes (com pitadas do break), ou àquela batida perfeita. São os sobrinhos do tio M. Jackson, que já influenciou Prince e Madonna, e ao lado de Marvin Gave e do maestro Barry White, introduziu a Soul Music na sala de visita da classe média alta. Sem contar o fato de ter sido o verdadeiro precursor do movimento Black Music, embrionário do HipHop.
O mito avançou nos anos seguintes por intermédio não apenas de álbuns de medianos para ruins, como, sobretudo, de uma infinita fofocada sobre suas manias, suas operações, sua aparência mutante, seus problemas familiares, sua amizade com Elizabeth Taylor, seu casamento com a herdeira do rei do Rock Elvis Presley, Lisa Marie Presley seus filhos com uma enfermeira.
Nos últimos três anos, somos acossados quase diariamente pelas notícias do genial Michael Jackson nas barras da Justiça, obrigados a assistir à degradação de um astro pop, às entrevistas compungidas de sua irmã LaToya, aos depoimentos inconclusivos e arrependidos de seu ex-amigo e ator-mirim Corey Feldman, à triste procissão de advogados espertalhões e familiares gananciosos.
Ainda que venha a se provar que Jackson nunca fez propriamente sexo com garotinhos, sem dúvida o astro tem uma relação muito, muito estranha com a infância. Não adianta LaToya argumentar, chorosa, que também ele no fundo é uma criança e não entende nada: legal e biologicamente, seu mano caçula Jacko é um adulto de 47 anos, de plena posse das faculdades mentais e, como qualquer outro, responsável pelos seus atos.
Aliás, seja Jackson considerado inocente ou culpado, os pais que autorizam os filhos a passar uma temporada em sua companhia deveriam ser levados aos tribunais. Ou já agem de má-fé, de olho em cala-bocas ou indenizações polpudas, ou são simplesmente irresponsáveis. Você aí deixaria seu filho ir brincar de médico em Neverland?
Questão de ordem. Pelo visto, Jackson só se envolveu com garotos. Seria um pedófilo ou, mais especificamente, um pederasta? Talvez se evite usar esta palavra por temor da reação dos homossexuais, indiscriminadamente chamados de pederastas. São coisas distintas. Por definição, o pederasta não acredita no amor entre iguais; sua relação é desigual: um homem feito com um menino. Como é desigual a relação entre um homem feito e uma menina.
Por isso, a pedofilia é um dos crimes mais abjetos que o ser humano pode cometer. Comprovada sua prática, Jacko merecerá pagar uma bela etapa num presídio californiano. Porém, também, Michael Jackson é um produto do seu meio. Tal constatação não o absolve: apenas aponta o quanto de culpa há na nossa cultura.
O ex-astro mirim do grupo The Jackson Five tornou-se ícone de uma sociedade, a ocidental, na qual a juventude é supervalorizada. Fingimos não enxergar isso. Tanto que as operações que modificaram sua aparência são ridicularizadas por tê-lo embranquecido e não por sua intenção primeira: rejuvenescê-lo. Ou, ao menos, congelá-lo na Terra do Nunca.
Claro que não poderíamos rir disso: estamos todos empenhados na mesma vã corrida contra o relógio, na mesmíssima fuga desesperada da velhice e, por extensão, da morte. Se não metidos numa câmara hiperbárica, como ele, já fregueses habituais de cirurgias estéticas, silicones, botoxes, regimes, vitaminas, malhações. Jackson não é o único monstro gerado por esta cultura. Basta dar uma olhada rápida na TV e nas colunas sociais.
Ali, entre outros lugares, poderemos ver também crianças erotizadas e modelos adolescentes fazendo caras e bocas e outras partes do corpo. A pedofilia está ali. Sob controle social, mas está. Assim como está, e esse era um dos meus temas na semana passada, na voracidade com que consumimos gerações de jovens no universo da música pop. Aquele no qual Michael Jackson, Britney Spears e Sandy foram gerados.

Na ocidentalizada Tóquio, lojas vendem calcinhas usadas e vidrinhos com urina de adolescentes para deleite de executivos. A pedofilia também está nisso, quase fora de controle. Quem já visitou uma loja especializada em quadrinhos e subprodutos, como, por exemplo, a inglesa Forbidden Planet, decerto não deixou de notar as bonequinhas das heroínas de mangá, em trajes e poses de transformar Sabrina Sato numa freira.
Curiosos, os tempos. Antigamente, O Homem almejava a vida eterna cultivando a alma. Hoje, o Homem almeja a vida eterna cultivando o corpo. Lamento lembrá-los disso, ainda mais numa manhã de Segunda-feira, ainda mais no meio do feriadão da República, mas o que cartesianamente chamamos de alma e corpo é, no entender de muitos, uma única coisa, uma coisa física.
Ambos apodrecem. No caso do genial Michael Jackson, em público.