Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, maio 08, 2006

Opera bufa


WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE



Dias atrás, os presidentes republicanos reunidos em Puerto Iguazu dissimularam incômodos, e a divisão em duplas (com Hugo Chávez, o general-presidente-populista da Venezuela no papel de mentor “intelectual” do recém-empossado presidente da Bolívia Evo Morales) para reforçar a imagem de unidade. Brasil e Argentina deram curso à opção diplomática pelo diálogo, assegurando a continuidade do fornecimento do gás boliviano. Já as negociações sobre preços serão atravessadas por uma eleição presidencial aqui e outra legislativa constituinte na Bolívia. Elas vão contar.

Para o Brasil, resultados práticos foram as garantias de integridade do patrimônio da Petrobrás na Bolívia. Parece clara uma divisão de tarefas. O vosso presidente-candidato da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) e o chanceler Celso Amorim seguirão usando a macia linguagem diplomática e a retórica da integração, deixando que a diretoria da Petrobrás S/A fale duro e procure de fato os caminhos judiciais, dentro e fora da Bolívia, em defesa de seus interesses e dos acionistas da empresa.

Mas se num dia o presidente da Petrobrás, o economista José Sergio Gabrielli, anunciou que resistiria a qualquer aumento nos preços, a Cúpula do Gás terminou com a aceitação, por Argentina e Brasil, de negociações bilaterais para a revisão deles. Gabrielli anunciou o fim dos investimentos da empresa na Bolívia e foi chamado de chantagista por Morales.

O presidente-candidato, e sujeito oculto do clube dos mensaleiros do delubiovalerioduto (lembre-se!), foi evasivo, dizendo na entrevista coletiva que a Petrobrás tem autonomia para investir onde achar conveniente. Fontes do Itamaraty dizem que será assim mesmo. A estatal brasileira do petróleo agirá como empresa de mercado, Luiz Inácio da Silva como chefe de Estado. Ao diálogo, restaria o confronto, que só tornaria as coisas piores. Alguns, no Brasil, dizem os diplomatas, parecem ter desejado que se optasse pelo confronto, quem sabe valendo-se também das tropas de fronteira para defender as instalações.

A histeria é nociva neste movimento, ouve-se ainda no Itamaraty. Outros países, inclusive o Brasil, já nacionalizaram seu petróleo. Mas não da mesma forma, admitem. Apesar da “unidade” demonstrada, são grandes as queixas sobre a “ambigüidade” de Hugo Chávez, que teria influenciado Evo Morales inclusive sobre a forma espetaculosa da nacionalização, plena de desconsideração para com o Brasil, vizinho e parceiro que ali investe desde o governo passado com inspiração cooperativa.

Mas para o contexto eleitoral, o que importa são as negociações sobre o preço do gás, que têm impacto sobre a economia e os preços internos. Morales precisa fazer a maioria na Assembléia Constituinte que será eleita em Julho. Um de seus motivos teria sido a perda de popularidade em sua base social-eleitoral, os movimentos sociais, indígenas e sindicais, além de uma elite intelectual que o apóia. Para ele, qualquer resultado antes de Julho talvez não interesse. Soaria insatisfatória diante das expectativas traduzidas por aquelas faixas afixadas nas refinarias cercadas: “Propriedad de los bolivianos”. Para o presidente-candidato também é conveniente evitar qualquer aumento antes de primeiro de Outubro, dia do primeiro turno da eleição presidente. Por tudo, as negociações devem se esticar, talvez além dos 180 dias.
A Oposição criticou duramente o governo Luiz Inácio da Silva (2003-6) pela tibieza diante da Bolívia. Não foi (só) aqui, mas na Espanha da petroleira Repsol. O liberal Partido Progressista Espanhol (PPE) bateu forte no premier socialista Zapatero.

E pensando bem, do jeito que vai, a próxima questão é saber quando o novo Mercosul vai convidar Cuba para entrar no bloco. Qual novo Mercosul? Esse aí, sob a liderança do presidente venezuelano Hugo Chávez.

Exagero? Observe-se então a cúpula que se reuniu em Puerto Iguazu... O problema central envolve Brasil e Bolívia e decorre da nacionalização da Petrobrás decretada pelo presidente boliviano Evo Morales. É assunto, portanto, de Luiz Inácio da Silva com o companheiro Morales. Mas chamaram Chávez para a cúpula. Chamaram também Nestor Kirchner, o que faz algum sentido. A Argentina, como importadora do gás boliviano, é parte da história, mas parte menor porque não há estatal Argentina sendo confiscada. Assim, a questão comum entre Brasil, Argentina e Bolívia é a manutenção do fornecimento de gás e o preço.

Chávez continua não tendo nada a ver com isso, a não ser de modo muito indireto. A Venezuela tem reservas de gás, maiores do que as bolivianas, e promove a idéia de um megagasoduto para levar seu produto a toda a América do Sul. Se fosse viável, seria uma alternativa, concorrência ao gás boliviano. Seria para isso — ameaçar Evo Morales — que Chávez teria sido convidado a Foz do Iguaçu? Certamente não. Ele esteve lá como mentor, guia e suporte do colega boliviano. Os dois, aliás, acabam de assinar um tratado comercial com Cuba. Chávez é o líder sul-americano da ala nacional-populista.

Já o presidente do Uruguai, Tabare Vazquez, foi a Washington (DC) com o propósito de explorar a viabilidade de um tratado de livre comércio com o governo dos Estados Unidos da América (EUA). Vazquez também vem da esquerda, sua Frente Ampla é muito parecida com a coalizão formada em torno de Luiz Inácio da Silva em 2002, antes da entrada dos partidos clientes preferenciais do mensalão. O Uruguai também pertence ao Mercosul, mas o governo uruguaio está achando que o bloco serve mais aos sócios grandes, Brasil e Argentina. Daí seu interesse em negociar acordos com os EUA e outros países.

O ponto interessante nessa história é que o chanceler brasileiro, Celso Amorim, já disse que o Uruguai deve deixar o Mercosul se assinar um tratado bilateral com os EUA. Nessa linha, o Mercosul ficaria com a Bolívia, já convidada, e sem o Uruguai, um fundador. De todo modo, supondo que o governo do Uruguai abra as negociações com o presidente da República dos EUA, George Walker Bush, haverá uma outra crise nesta região, mas vinda exatamente de lado contrário.

Pela Bolívia, o Brasil é alvo de uma nacionalização da qual a esquerda tradicional sempre gostou. Pelo Uruguai, a ameaça, digamos assim, é a expansão do chamado neoliberalismo e da influência dos EUA, coisa que Luiz Inácio da Silva dizia combater quando ajudou a melar as negociações em torno da criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Eis onde o presidente-candidato do petismo se meteu. Pretendendo ser o líder da América do Sul, primeiro, depois da América Latina e, finalmente, de todo o mundo emergente para falar “olho-no-olho” com o presidente da República dos EUA, Luiz Inácio da Silva acabou apanhado entre duas tendências.

De um lado, o nacional-populismo de Chávez impulsionado pela nacionalização dos investimentos dos gringos na Bolívia e o tratado com Cuba. De outro, a linha muito bem representada por um ato recente de Vazquez, que foi a assinatura com os EUA de um tratado de proteção dos investimentos estrangeiros. Poderia ser mais claro?

Esta segunda linha poderia também ser chamada de chilena: mercado, garantia aos investimentos, segurança dos contratos e abertura comercial ao exterior. O Chile, que é sócio, não membro, do Mercosul, já tem acordos de livre comércio com EUA, México, Europa, China e Coréia do Sul. Segundo o presidente uruguaio, trata-se de um “país moderno e aberto a uma integração mundial”, modelo que pretende seguir. O governo uruguaio tem afirmado que, pela sua interpretação, tem todo o direito de assinar acordos comerciais com terceiros países, permanecendo como membro pleno do Mercosul. Se o governo brasileiro insistir na tese contrária — ou Mercosul ou o acordo com os EUA — e se o Uruguai iniciar as negociações em Washington, certamente será necessário convocar outra cúpula. Participariam Vazquez, Luiz Inácio e Kirchner, sem dúvida. Mas quem seria o convidado de fora? A presidente da República do Chile, Michelle Bachelet, ou ele, o próprio George W. Bush?