Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, setembro 08, 2005

Paixão de pai

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

Interrompendo a audiência do noticiário novelesco da corrupção no governo petista, para dar um descanso ao estômago, fui assistir “Dois filhos de Francisco”, do cineasta Breno Silveira, numa sessão especial. Tinha várias razões para não ir, a primeira das quais era o fato de se tratar da história da dupla breganeja Zezé di Camargo & Luciano, de quem eu não aprecio, apesar de nunca ter ouvido uma canção inteira. Puro preconceito, confesso!

Além disso, eles foram os músicos que receberam uma dinheirama para animar os comícios do Partido dos Trabalhadores (PT) na campanha presidencial em 2002, dinheiro talvez derramado pelo valerioduto. Se não bastasse, a ação se passa em Goiás, terra do ex-tesoureiro petista Delúbio Soares: aquela figura que me parece personagem de filmes fakes, com a voz pastosa e o cinismo revoltante.

Lera opiniões respeitáveis a favor. E cito duas como ilustração. Do cantor Caetano Veloso: “É a coisa mais profunda e maravilhosa que já vi". E do amigo e crítico de Cinema Marcos Petrucelli (Rádio CBN): “Me emocionou e vai emocionar qualquer um, até quem não gosta de música sertaneja". Soube também da consagração inédita no Festival de Cinema de Gramado, encerrado no último fim de semana.

Eu dizia “tudo bem, mas esse não me pega". Era essa a minha pré (in) disposição.

A mim, o que impressionou foi o extraordinário fenômeno de comunicação que é o filme, independentemente de sua qualidade cinematográfica e de excelentes desempenhos, como os dos atores Ângelo Antônio e Dira Paes (ambos integrantes do casting da TV GLOBO), interpretando respectivamente o pai e a mãe dos cantores, e dos garotos que interpretam a dupla na infância. Deixo para os críticos a análise técnica — a direção, o roteiro, a fotografia. Poucas vezes vi na tela tanto apelo popular e tanta capacidade de tocar sentimentos e emoções.

Por estimular as glândulas lacrimais, o filme talvez venha a ser acusado de piegas e brega por quem confunda o vivido com o narrado. No caso dessa história real, é a vida, não o relato, que é melodramática e às vezes inverossímil. Nada mais comovedor do que esse Francisco tido como louco por sua obsessão de tirar os filhos da enxada e inocular neles, quase à força, a vocação musical. Irresistível a cena politicamente incorreta em que, com grande sacrifício, compra centenas de fichas telefônicas com as quais faz seus colegas peões de obra inundarem um programa de rádio com pedidos para tocar a música dos filhos. Foi graças a essa forçação de barra inicial que a dupla conseguiu gravar “É o amor” (autoria de Zezé di Camargo) que acabaria vendendo 20 milhões de cópias.

"Dois Filhos de Francisco" tem como pano de fundo o Brasil rural, jeca, profundo, chamado de arcaico quando a violência morava no campo e ainda não tinha se transformado na moderna barbárie urbana. Edificante, recheado de valores fora de moda nesses tempos de razão cínica, não há como evitar a comparação por contraste dos personagens reais do filme com os igualmente reais que estão aparecendo na mídia diariamente. E ainda por cima há a compensação de se constatar que a terra que pariu um Delúbio também pariu Francisco.