Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, janeiro 05, 2010

O cartapácio da discórdia

E POR MUITO pouco, o governo não termina o ano imerso numa grave crise militar - seria a primeira desde a redemocratização, há um quarto de século. O governo petista brincou com fogo ao permitir a edição do decreto que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos. Esse plano, que reúne 25 diretrizes e mais de 500 propostas e ações nas mais variadas áreas, seria apenas uma coleção de intenções, se não tivesse sido enxertado com algumas medidas que podem solapar os instrumentos que serviram de base para a pacificação da sociedade brasileira, na transição do regime militar para o Estado Democrático de Direito.

ESSA reação dos comandantes militares à tentativa - mais uma vez patrocinada pelo ministro-chefe da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi (PT-RS) -, de revogar a Lei da Anistia foi enérgica e recebeu inteiro apoio do ministro de Estado da Defesa, Nelson Jobim (PMDB-RS), que há tempos vem tentando conter as iniciativas revanchistas de Vannuchi e do ministro de Estado da Justiça, Tarso Genro (PT-RS).

CIDADÃOS pouco afeitos aos fatos ligados à repressão política, durante ditadura militar (1964-85), e que somente tomem conhecimento das iniciativas daquela dupla de ministros certamente terão a impressão de que os quartéis, na atualidade, estão cheios de torturadores e as Forças Armadas do Brasil são dirigidas por liberticidas. Nada mais falso.

AQUELES militares que cometeram abusos, torturaram e mataram durante a repressão há muito deixaram o serviço ativo. Seus nomes e seus feitos são conhecidos, assim como os de suas vítimas. Alguns deles estão sendo processados e o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá decidir qual o alcance e a abrangência da Lei da Anistia. Esses acontecimentos as lideranças militares veem com "naturalidade institucional", ou seja, não perturbam a rotina castrense.

BEM diferentes são as tentativas de revogar a Lei da Anistia, para punir todo e qualquer agente do Estado que participou da repressão - e isso não significa necessariamente ter abusado, torturado ou matado -, mas garantindo a imunidade dos que atentaram contra as leis e a ordem vigentes, mesmo tendo abusado, torturado e matado - pois a Esquerda Armada também cometeu seus abusos.

PARA os militares, é ponto de honra que a Lei da Anistia permaneça em vigor, nos termos em que foi aprovada em 1985. Entre outros motivos, porque assim se isola a instituição de uma fase histórica conflituosa, que exigiu que os militares deixassem de lado sua missão profissional tradicional e assumissem os encargos da luta contra a subversão. Isso não se fez sem prejuízos à coesão e à hierarquia das Forças Armadas do Brasil.

MAS a manutenção da Lei da Anistia, para a nação, é mais que um ponto de honra. É a garantia de que os acontecimentos daquela época não serão usados como pretexto para que se promova uma nova e mais perniciosa divisão política e ideológica da família brasileira. Aqueles que viveram os acontecimentos de 1964 para cá sabem que a Lei da Anistia foi o marco que permitiu a reconciliação nacional e a redemocratização - esta completada três anos depois com a nova Constituição Federal do Brasil (1988), sem que houvesse os episódios de autoritarismo e violência que pipocaram durante os processos de abertura e dissenção política na Argentina, Chile, Uruguai e Peru.

COM o pedido de demissão do ministro da Defesa e dos três comandantes militares sobre sua mesa de trabalho, o vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), recuou. Pediu ao ministro Nelson Jobim que garantisse aos comandantes militares que o seu governo não será porta-voz de medidas que levem à revogação da Lei da Anistia. Mas o mais absurdo é que o vosso presidente da República argumentou que não tinha conhecimento do inteiro teor do Programa Nacional de Direitos Humanos - daí prometer rever a parte do Decreto que causou descontentamento e adiar o envio ao Congresso Nacional do Projeto de Lei (PL) de criação da comissão encarregada de investigar os abusos cometidos durante a ditadura militar.

DE FATO o programa é caudaloso. Inclui de medidas que permitiriam à polícia invadir dependências das Forças Armadas do Brasil, "para identificar e preservar locais de tortura", até a regulamentação da taxação de grandes fortunas - o que quer que isso tenha a ver com direitos humanos. Por isso mesmo, o dever do presidente da República era não apenas conhecer o cartapácio, como determinar a seus assessores o expurgo dos excessos ideológicos que lá estão registrados.