Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, setembro 24, 2005

Nossa esfinge central

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
SÃO PAULO

O conquistador Hernan Cortez em sua segunda carta a Carlos V, imperador do Sacro Império Romano, que era também Carlos I, rei de Espanha, descobre a caminho da capital asteca a cidade de Tlaxcallan: “É tão grande, muito maior do que Granada. Bons edifícios, muita gente e mais bem abastecida que Granada. Tem pão, legumes, aves, pescado, caça e um mercado ao qual chegam cotidianamente mais de 30 mil almas vendendo e comprando. Ali há de tudo: vestidos, calçados, comidas, jóias de ouro e prata, pedras preciosas tão elaboradas que podem ser expostas em qualquer lugar do mundo. Há casas onde lavam a cabeça e as raspam, como em barbearias”.

Cortez atinge finalmente a formidável cidade de Tenochtitlan, com seus canais navegáveis, seus templos fabulosos e seus mercados. “Procurarei dar um relato das maravilhas e estranhezas desta grande cidade. Está edificada sobre um lago. É tão grande quanto Sevilha e Córdoba. Tem praças, onde há mercados, pontos de compra e venda. Há uma praça tão grande que corresponde a duas vezes a cidade de Salamanca, com pórticos de entrada, aonde diariamente vão mais de 60 mil almas para vender e comprar. Há todos os gêneros de mercadoria, desde jóias de ouro, prata e cobre até pombos, papagaios e galinhas. Há casas como de boticários, onde se vendem medicamentos, ungüentos e emplastros. Há casas onde dão de comer e beber mediante pagamento. Há homens para carregar cargas, como os que chamamos “ganha-pão” em Castela. Há à venda lenha, carvão e esteiras para camas diversas. Há verduras de toda espécie, mel de abelha, fios de algodão para tecer, couro de veado, tintas para pintar tecidos e couro, louças de muito boa qualidade, milho em grão e pão de excelente sabor. Há no centro da praça uma casa de audiência onde estão sempre reunidos dez ou 12 juízes para julgar questões decorrentes de desacertos nas compras e vendas, como também para mandar castigar os que cometem atos de delinqüência. Nos mercados e nas praças, há muitos especialistas de determinados ofícios que ficam à espera de quem os venha contratar por jornada. As pessoas andam bem vestidas, com boas maneiras, quase da mesma forma como se vive na Espanha. Considerando ser essa gente bárbara e tão apartada do conhecimento de Deus, como têm todas essas coisas?”.

Esse é o enigma de Cortez. Há 500 anos, os astecas arrancavam corações em peitos vivos, mas produziam também enorme riqueza, além de impostos colossais cobrados aos vizinhos.

Existem inúmeras teorias para explicar como um exército com 400 homens, 16 cavalos, 32 escopetas e quatro canhões, destruiu uma civilização. Fatores geográficos e biológicos (“Armas, germes e aço”, de Jared Diamond, 1999).

A superioridade estratégica (leu em latim “César: a conquista da Gália” (Handford, 1951), explorando magistralmente rivalidades locais) e a coragem do conquistador (“Cortez e a queda do império asteca”, Jon White, 1971). Finalmente, a disciplina dos ocidentais, desde as falanges gregas (“Carnificina e cultura”, Davis Hanson, 2001).

Mas a resposta ao paradoxo de Cortez está em seus próprios relatos, que apontam o funcionamento vigoroso dos mercados, produtos evolucionários universais como a linguagem e os costumes.