Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sexta-feira, outubro 14, 2005

Tempos cesáreos

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
RIO DE JANEIRO


Nos próximos meses, parte deste País, fôlego suspenso, irá acompanhar através da TV uma história na qual um poder político tenta subjugar o outro, o Senado discute casuísmos, os partidos manobram nas coxias, a corrupção come solta, as messalinas oferecem suas meninas em troca de influência, a aristocracia antevê novas conquistas, a plebe se afunda numa jogatina desenfreada e todos fornicam na frente dos escravos.
As semelhanças entre “Roma” e Brasília (DF) são tão numerosas e tentadoras quanto estéreis. O parágrafo acima se aplica também, apenas por exemplo, a Washington (DC). Com o paralelo adicional de que os romanos travaram uma guerra sem fim nas suas fronteiras. Seja como for, a minissérie produzida e exibida pelo canal especializado em dramaturgias HBO (HBO/SKY-NET) não vai acabar em pizza: inclusive porque ela, tal como a conhecemos, é uma invenção napolitana do século XVIII da nossa era.
Durante os 12 capítulos que estréiram oficialmente no último Domingo, 09, às 22h, ainda estamos entre os anos 52 e 44 a.C.. São tempos interessantes. A República está morrendo e não sabe: dois dos membros do antigo triunvirato com Crasso, César e Pompeu, estão em rota de colisão depois da conquista da Gália pelo primeiro. Do assassinato de César e das ruínas de um sistema político que não tem muito em comum com as modernas repúblicas, emergirá o Império, consubstanciado em Otávio, nomeado Augusto, já em cena, jovem.
No Sábado, 01, como aperitivo para a estréia e de modo a estimular novas adesões a planos de assinatura que incluem o canal de filmes HBO, dois canais de serviço da programadora GLOBOSAT: PREMIERE 168 e PREMIERE 185 exibiram sem parar o primeiro e o segundo episódios de “Roma”. Deixei de lado o zapping para quedar-me diante de: recriação minuciosa da vida civil e militar; sangue, nudez e sexo a dar com o pau (epa! figura de linguagem); grande desempenho do elenco inglês, em particular da atriz que interpreta a lasciva Átia (Polly Walker), sobrinha de César. Qual Vercingetórix, rendi-me a “Roma”.
Paralelamente às grandes intrigas de César (Ciáran Hinds), Pompeu (Kenneth Graham) e Otávio (Max Pirkis), a minissérie desenvolve as pequenas intrigas de dois personagens que de fato existiram, mas sobre os quais pouco se sabe: o íntegro centurião Lúcio Voreno (Kevin McKidd) e o dissoluto legionário Tito Pullo (Ray Stevenson), citados pelo próprio César em suas memórias da guerra na Gália. São estes dois militares da XIII Legião que exemplificam os efeitos esmagadores da História sobre a patuléia.
Após oito anos de campanha, Voreno tem problemas para se reaproximar da mulher Niobe (Indira Varma) e das filhas que mal conheceu. Já Pullo tem problemas em toda parte: na Gália, bebe além da conta e agride Voreno; de volta a Roma, bebe além da conta e arruma uma briga de jogo num prostíbulo; este fuzuê, por sua vez, vai ocasionar, além de um ferimento no seu crânio (operado em detalhes com os instrumentos cirúrgicos da época), o pretexto perfeito para César e Pompeu iniciarem a Guerra Civil.
Fora “Arquivo X” e “Sex and City” nunca acompanhei os modernos seriados norte-americanos, por falta de empatia e disciplina. Prefiro, sinceramente, a teledramaturgia produzida e/ou co-produzida pela TV GLOBO. Parece-me, no entanto, que a “Roma” dirigida por Michael Apted, entre outros, é a minissérie-para-acabar-com-todas-as-séries: “The West Wing”, “E.R.”, “Desperate housewives” e “Pensacola” numa só.
Não é, claro, a primeira grande obra que a HBO nos oferece; aqui, em co-produção de US$ 100 milhões com a BBC e a RAI. Os dez episódios de “Band of brothers”, sobre a Segunda Guerra Mundial, produzidos por Steven Spielberg e Tom Hanks ao custo de US$ 125 milhões, são os meus favoritos. E os seis de “Angels in America”, sobre a emergência da Aids e do neoconservadorismo nos Estados Unidos da América (EUA), dirigidos por Mike Nichols, não têm preço.
A qualidade técnica e dramática destas minisséries se repete em telefilmes como “Conspiracy” (com Kenneth Branagh, sobre a Conferência de Wannsee, que determinou a infame Solução Final para os judeus durante a Segunda Guerra Mundial) e “Wit” (com Emma Thompson, sobre uma professora de Literatura moribunda de câncer). Ao adquiri os DVDs de uns e de outros, ajudei a pagar as produções. Assim como os 27 milhões de assinantes da HBO nos EUA as financiaram. “Roma”, portanto, não tinha como dar errado.
Pena que, pelo que se pôde ler desde a estréia, as legendas brasileiras se eximem de bem traduzir algumas coisas. Para elas, por exemplo, houve um personagem histórico chamado Cato. Ora, Kato era o fiel criado do Besouro Verde. Em português, o ferrenho adversário de César no Senado se chama é Catão, dito o Jovem para diferenciá-lo do bisavô Catão, o Censor, autor do célebre bordão Delenda est Cartago (“Cartago deve ser destruída”). Antes do final da série, este Catão, o Jovem irá cometer seu célebre suicídio.
A atitude liberal para com a morte voluntária, aliás, é apenas uma das características que nos fascina na Roma Antiga. Embora ela nos seja tão familiar no idioma, no Direito, na Arquitetura, sua moral nos é estranha. Afinal, a civilização cristã foi construída em oposição à romana, não à judaica, da qual é tributária. Inocentes do pecado original, os contemporâneos de César entregavam-se à crueldade e à lubricidade sem culpas. O que tendemos a ver como dissolução dos costumes era simplesmente o seu costume. Isto lança um desafio extra à produção realista de “Roma”: revivê-la não como uma imagem negativa nossa, e sim como a imagem positiva de si mesma.