Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, março 30, 2011

Sem omissão e conivência

O VOTO da representação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) a favor da designação de um relator especial para investigar as violações desses direitos no Irã foi rigorosamente coerente com o papel central que a presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS), confere à questão - sem distinção de países - no corpo da política externa brasileira. No governo Luiz Inácio da Silva (2003-10), o Itamaraty queria distância do assunto. O então chanceler Celso Amorim (PMDB-RJ) argumentava que as propostas de condenação de governos infratores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, serviam a interesses políticos dos Estados Unidos da América (EUA) e das potências ocidentais em geral. Afirmava também que eram inócuas: muito mais eficaz para a causa seria o diálogo discreto com os governos opressores, sem os expor à execração internacional.

A PRIMEIRA alegação mal escondia a intenção de fustigar o governo dos EUA. Peça-chave da diplomacia lullista, o antiamericanismo - do tipo do "pragmatismo responsável" dos tempos da Ditadura Militar (1964-85) - aproximou o Brasil dos regimes autoritários do Oriente Médio, África e Ásia. O País conquistou a desonrosa distinção de ser a nação democrática mais propensa a abraçar ditadores e protoditadores de diferentes latitudes. Isso teve o efeito de perverter a nova projeção alcançada pelo Brasil como uma das quatro maiores economias emergentes do mundo. A segunda alegação é patentemente falsa. O Irã, por exemplo, não se tornou menos despótico por causa das presumíveis iniciativas brasileiras em favor desta ou daquela vítima singular das violências do governo de Mahmoud Ahmadinejad. É bom não esquecer, aliás, que Luiz Inácio da Silva avalizou tacitamente a brutal repressão aos protestos contra a fraude eleitoral que deu ao seu amigo um segundo mandato em 2009, desqualificando-as como "choro de perdedor" e reduzindo os choques de rua no país a uma "rixa entre vascaínos e flamenguistas".

ESSA crônica da confraternização diplomacia brasileira com a teocracia de Teerã começou a mudar de rumo com a crítica aberta de dona Rousseff, então presidente eleita, à decisão do Brasil de se abster de condenar, na Assembleia-Geral da ONU, a sentença de apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani. O apoio à criação de uma relatoria especial para o Irã no CDH da ONU vem na sequência. Na última Quinta-feira, 24, o Brasil foi um dos 22 países a respaldar o projeto copatrocinado pelos EUA e a Europa. Sete, entre os quais China, Rússia e Cuba, se opuseram, e 14 lavaram as mãos. Destes, a única democracia foi o Uruguai. A contar de 2001, o Brasil havia participado de 12 votações sobre o Irã. Absteve-se em 11. A exceção ocorreu no primeiro ano do governo Luiz Inácio da Silva, quando, numa comissão da ONU, o País endossou os relatórios do organismo apontando abusos de direitos humanos no país persa.

AGORA, a chefe da representação no CDH da ONU, sediado em Genebra, embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo, disse que o Brasil não votou "contra o governo do Irã", mas "a favor do sistema de direitos humanos da ONU". Não foi bem isso o que aquele governo teocrático entendeu. O delegado iraniano, Mohammad Reza Ghaebi, acusou o governo do Brasil de se comportar "como um país pequeno que se curva aos interesses dos EUA". O seu colega argelino, Idriss Jazairy, disse que o novo governo do Brasil quis "agradar à opinião pública interna e ao Ocidente". E o embaixador paquistanês, Zamir Akram, falando em nome da Organização da Conferência Islâmica, lamentou a "mudança de visão" do governo do Brasil. É do que se trata, efetivamente - embora não haja nada a lamentar nisso, muito ao contrário. A mudança consiste em dar a devida importância ao tema dos direitos humanos no plano multilateral, o "sistema" de que fala a diplomata Nazareth, até para fortalecer as Nações Unidas.

INICIOU-SE pelo Irã, mas, se depender do governo do Brasil, qualquer governo no mundo que se recuse a cooperar com a instituição nessa esfera entrará na alça de mira. "O Brasil acredita que todos os países, sem exceção, têm desafios a superar na área", argumentou a embaixadora. No governo Luiz Inácio da Silva, dessa premissa se seguia a conclusão cômoda de que, não sendo possível promover os direitos humanos em toda parte, melhor não fazê-lo em parte alguma. Era a justificativa para a omissão e a conivência. Isso agora parece página virada.