Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sexta-feira, maio 22, 2009

A sombra do monumental calote

A PARTIR de 1889, sob a forma de República Federativa, formada pela união indissolúvel dos Estados, dos municípios e do Distrito Federal, e desde então o governo passou a ser exercido no Brasil por três Poderes, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Nenhum deles pode sobrepor-se aos outros. Essa é a essência do chamado sistema presidencialista, que o País adotou da noite para o dia, num equívoco imperdoável, logo após a surpreendente Proclamação da República. O idealizador desse sistema foi Montesquieu, mas foi nos EUA que ele encontrou seu solo mais fértil. O sistema presidencialista ajustava-se à realidade americana: a nova nação surgia sob a forma de Federação, unindo os Estados, que lutaram juntos para conquistar a independência, na hora de governar.

É MUITO bom lembrar que os fundadores da nova pátria rejeitavam tanto a Coroa quanto seus usos e costumes. Mesmo antes da independência eles já praticavam a democracia, com eleições livres para quase tudo e permanente respeito pelas minorias. Na monumental obra de Tocqueville é possível perceber, desde aquela época, a enorme diferença entre o que se passava por lá e o que se passava por aqui. Dá para entender as causas da fragilidade do nosso presidencialismo, sempre tão exposto a caudilhos e ditadores, a rupturas do Estado de Direito e à permanente desarmonia entre os três Poderes. Nunca formamos uma Federação. E praticamos pouca democracia. Não temos pelas leis a mesma reverência que existe nos Estados Unidos da América (EUA).

OS EUA não são uma nação de santos. Mas na cabeça do norte-americano, por uma herança cultural muito bem mantida, lei é lei. As escolhas que o presidente Barack Obama fez para compor seu governo passaram pelo crivo dos dois outros Poderes. Vimos seus candidatos submetidos a duras exigências, que aqui jamais seriam apresentadas. Graças a esse apego à lei, a Constituição norte-americana jamais foi desrespeitada ou trocada. As poucas emendas aprovadas mantiveram todo o espírito do texto fundamental, estabelecido há mais de dois séculos.

ENORMES são as diferenças entre o presidencialismo deles e o nosso. Lá, quando o Congresso vota o Orçamento, é para valer. Aqui, ele é apenas autorizativo. Lá, quando um tribunal emite uma sentença, é para ser cumprida. Aqui, ela é apenas comprida... E não precisa ser obedecida.

NO REGIME presidencialista norte-americano (o único respeitável do planeta), nenhum dos três Poderes tem como afrontar os outros. Lá, por mais carismático e bem votado que seja, o presidente não é imperador...

NO BRASIL, estamos vivendo período extremamente perigoso, imperial demais para o meu gosto. Aliás, Três Poderes, em Brasília, só mesmo no nome da praça. E olhe lá! Porque, se for o caso de querer fazer obras nela, o Executivo chama "o arquiteto-mor, por testamento de Adão" para poder decidir. A capital é dele... Por tudo isso, dá para desconfiar da crescente e bem orquestrada desmoralização dos Poderes Legislativo e Judiciário. A medida provisória, à moda presidencialista, acabou com eles. O Poder Executivo reina absoluto entre nós. Qualquer presidente será sério, honesto e justo se quiser. Se não quiser, não importa. As leis são para os outros.

RECENTEMENTE tivemos um exemplo. Valeu a pressão feita por prefeitos e governadores, em pleno período de crise, desemprego e queda da produção e do comércio: abriram-se os cofres para que S. Exas. possam ajudar na campanha presidencial, antecipada ilegalmente.

CONTUDO, executivos públicos estão apavorados com as consequências que poderão sofrer com o não-pagamento dos títulos precatórios. O generoso chefe não tem como anistiá-los! São dívidas definidas pelo Poder Judiciário. O Executivo gastou todos os trunfos para não pagar. Os processos arrastaram-se por décadas, mas os credores ganharam. A Justiça fez o cálculo e mandou pagar. Algumas dessas dívidas, reconhecidas e julgadas, esperam o pagamento há mais de 36 anos. Essa é a história de centenas de milhares de brasileiros. "E a lei?", pergunta o credor. "Que lei?", responde o devedor.

EM MAIO de 2000 foi sancionada a mais importante lei para o Brasil contemporâneo: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Uma lei tipicamente republicana! Executivos passariam a sofrer penalidades, jurídicas e políticas, sempre que empurrassem dívidas para seus sucessores. Foi um pânico geral: o que fazer com os precatórios? Eles representam mais de 80% do endividamento público. E criam o risco de intervenção federal ou bloqueio de receitas. O Poder Judiciário vem julgando esse assunto com severidade. Vários municípios e estados já sofreram o bloqueio de suas receitas. Vários casos de intervenção foram julgados. Foi, então, preciso salvá-los! Logo em setembro daquele ano, o Governo enviou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 30 ao Congresso Nacional. Aprovada, ela gerou, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o artigo 78 e seus parágrafos, para vigorarem até o fim de 2009. Essa data está chegando! Os devedores precisam, de novo, de um salva-vidas. Como? Apresentando a PEC 12, para mudar a PEC 30. Simples, não? Os parlamentares serviçais de sempre logo se mexeram. A PEC foi para o Senado Federal e aprovada a toque de caixa, em meio à lama geral que atola aquela Casa do Poder Legislativo Brasileiro. Agora, vão fazer de tudo na Câmara dos Deputados para manter o calote. Ele atinge quase meio milhão de credores. E alcança mais de R$ 100 bilhões!

AFIM de anistiar os devedores sem afrontar os outros dois Poderes, o Executivo só tem uma saída: manter na PEC 12, sem alterá-los, o artigo 78 do ADCT e seus parágrafos. E criar, de forma clara, um fundo especial que ajude prefeituras, estados e órgãos federais a pôr em dia essas dívidas. Se não o fizer, a PEC vai ser a Lei do Calote.