Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, agosto 28, 2006

Identidade nacional

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

Segundo a História, em 1940, 87% dos cidadãos negros norte-americanos estavam abaixo da linha da pobreza. Em 1960, antes mesmo da Lei de Direitos Civis (LDC), que acabou com a odiosa segregação entre cidadãos negros e brancos, esse número despencou para 47%. Em 1970 já na vigência da LDC que garantiu direitos iguais, mas antes da implementação das políticas de cotas, o número de negros pobres caiu mais 17 pontos percentuais. De lá para cá, quando as cotas se disseminaram nos Estados Unidos da América (EUA), a proporção de cidadãos negros pobres caiu apenas mais um ponto: desde então, oscila em torno de 29%. Em 1940, os negros norte-americanos entre 25 e 29 anos tinham quatro anos de estudo a menos do que os jovens brancos. Em 1960, essa diferença já tinha caído para 2 anos. E, em 1970, antes adoção das cotas, era de menos de um ano: 12,1 contra 12,7.

Então eu me pergunto: a quem então essas políticas beneficiaram? Aos negros que já tinham saído da pobreza por conta própria.

É mesmo sempre assim: quando se adotam políticas desse tipo, são os mais afortunados entre os menos afortunados que se beneficiam delas, porque são eles que têm mais acesso às informações, mais educação, mais recursos. O efeito danoso da adoção do regime de cotas é que muito antes delas os negros norte-americanos, num esforço próprio gigantesco, tinham conseguido avançar magistralmente, mas, hoje, a sociedade norte-americana acredita que o êxito deles se deve a algum tipo de generosidade oficial.

Se o negro norte-americano, numa sociedade racista e legalmente segregada como a sociedade norte-americana antes de 1960, conseguiu avanços extraordinários, o que não conseguiríamos nós, negros brasileiros, numa sociedade absolutamente menos racista, se hoje estivéssemos lutando unidos por investimentos maciços na melhoria da educação básica?

Em vez disso, uma parcela da Opinião Pública esclarecida se bate pela adoção do regime de cotas, sem querer acreditar que o resultado prático delas será cindir racialmente a pobreza. No Brasil, tem-se uma tarefa inadiável: dar educação básica de qualidade aos pobres, sem distinção de cor da pele, porque os pobres, indistintamente, sofrem demasiadamente.

Um retrato fiel do que acontece nessas paragens é o excelente livro “Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor”, (Nova Fronteira, 144 páginas, R$22) do colega jornalista Ali Kamel, 44, ex-editor do Jornal O GLOBO, colaborador e ex-diretor dessa AGÊNCIA O GLOBO, e que atualmente é o editor-executivo da Central Globo de Jornalismo (CGJ), TV GLOBO.

Ali Kamel é terminantemente contra a adoção das cotas raciais nas universidades públicas brasileiras. Poderia ser apenas mais uma opinião, partindo de pontos de vista ou argumentos pessoais. No entanto o que se lê na publicação é mais do que isso. O livro é um estudo bem abalizado sobre discursos, estatísticas e métodos que estão envolvidos no debate sobre as cotas. No livro, Kamel, põe o dedo na ferida, usando argumentos plausíveis e incontestáveis contra a adoção do regime de cotas raciais no Brasil, mediante dados coletados ao longo dos últimos anos pelos principais organismos (independentes) especializados no assunto. É leitura indispensável para quem deseja entender a questão dentro da realidade nacional.

A radicalização do debate, porém, leva a atitudes até bem pouco tempo inimagináveis vindas de pessoas de bem, como os colegas jornalistas Elio Gaspari (Jornal O GLOBO/AGÊNCIA O GLOBO) e Miriam Leitão (TV GLOBO/AGÊNCIA O GLOBO/CBN). Ambos acusaram, os que como eu e Kamel somos contra a adoção do regime de cotas, de tentar ganhar o debate com base em truques perversos de manipulação dos dados e apropriação indevida do pensamento alheio, uma espécie de fast food das idéias. Um equívoco.

Ninguém pode dizer que o saudoso líder pacifista Martin Luther King era a favor da adoção de cotas nos EUA. Ninguém pode também dizer o contrário. Simplesmente porque ele jamais se manifestou claramente sobre o regime de cotas. É verdade que ele se disse favorável a políticas de reparação, mas é igualmente verdade que ele queria que tais políticas beneficiassem pobres, fossem brancos ou negros. É verdade que ele disse que uma sociedade que cometeu injustiças contra os negros durante centenas de anos precisava agora fazer alguma coisa especial por eles, equipando-os para competir numa base justa e igual. Mas depreender daí que ele advogava a adoção do regime de cotas é uma ilação que fica por conta de quem a faz. Eu, por exemplo, entendo que “equipar” pode aí significar dar-lhe educação de qualidade. É verdade que Martin Luther King advogou que uma empresa ou uma fábrica tivesse um quadro funcional que refletisse a estrutura de cor da população, mas ele jamais disse que isso deveria ser feito mediante adoção de cotas compulsórias. Eu sempre imaginei que ele desejasse alcançar tais metas pelo fim do racismo do empresariado e pela elevação educacional dos cidadãos negros norte-americanos.

O que é certo é que o sonho de Martin Luther King era chegar a uma sociedade em que as pessoas não fossem julgadas pela cor da pele, mas pelo caráter e capacidade. Esse sonho é o meu e, até onde posso ver, daqueles que vêem nas cotas o perigo de acirrar o racismo, por exemplo, dentro da Universidade em vez de atenuá-lo. Querer me dizer com o que devo sonhar é mais do que arrogância; é uma demonstração de intolerância totalitária vinda de alguém que sempre lutou contra isso. A pior ironia é que hoje, nos EUA, quem mais se bate para provar que Luther King advogava a adoção do regime de cotas é a extrema-direita racista. Eles querem destruir o que chamam de um mito: a crença, consolidada nas últimas décadas, de que o cerne do pensamento de Luther King era lutar por uma sociedade onde raça não fosse um critério.

Eu, pessoalmente, jamais escrevi ou falei que o problema da adoção do regime de cotas é que elas ferem o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Mas essa é uma interpretação legítima. É verdade que a Constituição Federal permite tratar desigualmente os desiguais, desde que haja um fundamento razoável e um fim legítimo. É, de fato, o caso dos impostos progressivos (quem ganha mais paga mais). Mas será que o mesmo se dá com a adoção as cotas? Creio que não. A regra dos impostos vale para todos: se um pobre amanhã vier a ter uma renda maior, ele pagará um imposto maior. Ninguém tem um direito inato para sempre pagar menos. Já com as cotas a coisa é diferente: uma característica inata, a cor da pele, daria um privilégio vitalício. Duas pessoas em situações em tudo equivalentes, mas diferentes na cor, não teriam o mesmo direito. Ambos seriam pobres, com a mesma renda, moradores do mesmo bairro (ou favela), mas um teria um privilégio para entrar na Universidade e o outro não. Ou, pior, um negro rico teria um privilégio que seria negado a um branco miserável. É como se a origem de classe determinasse, para sempre, o quanto se pagaria de impostos: um cidadão, nascido pobre, pagaria sempre menos imposto, mesmo que venha a enriquecer; e um cidadão, nascido rico, pagaria sempre mais imposto, mesmo que venha a empobrecer. Isso é absurdo. Como as cotas raciais.

Da mesma forma, nunca se disse que as cotas criarão o racismo, porque sabemos que o racismo é um sentimento abjeto presente em todas e quaisquer sociedades. O que se diz é que as cotas vão acirrá-lo, dando origem ao ódio racial, algo que até aqui desconhecemos. Também não ouço ninguém dizer que os que são a favor das cotas são contra investir na qualidade do ensino básico. Isso é apenas jogar com as palavras. O que se diz é que a prioridade é investir no ensino básico e que, se isso for feito, as cotas serão desnecessárias.

Não reconheço em ninguém o direito de me dizer o que eu deva desejar para os meus filhos e netos. Não sei como classificar a afirmação de que os que são contrários às cotas, como eu, desejamos para este País o triste destino de uma nação em que os brancos e negros estejamos separados por uma imensa distância social. Isso é um velho vício: quem discorda desse pensamento generalista é do mal; “está na contramão da história”, dizem nossos críticos de plantão. Prefiro ficar com o saudoso mestre Nelson Rodrigues: toda unanimidade é mesmo burra!

Não caiamos na velha armadilha do rancor. Tenho dito aqui que ninguém tem o monopólio da verdade, da ética e da virtude. Numa democracia, uma opinião se torna majoritária apenas pela força de seus argumentos.