Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sexta-feira, julho 31, 2009

Modus operandi patrimonialista

RIO DE JANEIRO – TRATA-SE de um material didático de primeira ordem para um curso introdutório de ciência política, quando se trata de explicar o conceito de patrimonialismo - a apropriação dos bens públicos por grupos enquistados em instâncias dos poderes de Estado -, descrever como o esquema funciona numa situação concreta e analisar a mentalidade dos envolvidos. Tal material é um conjunto de transcrições dos telefonemas interceptados pelo Departamento de Polícia Federal (DPF), com autorização judicial, no curso da Operação Barrica. A investigação, por sinal, levou ao indiciamento, por lavagem de dinheiro, tráfico de influência e formação de quadrilha, do o empresário Fernando Sarney, primogênito do presidente do Senado Fderal, José de Ribamar Sarney (PMDB-AP), quem cuida dos negócios da família nordestina. A nora do senador Zé de Ribamar Sarney, Teresa Murad, e outros oito suspeitos também foram indiciados.

NO ÚLTIMO dia 15 de Julho a reportagem do Jornal o Estado de S. Paulo revelou a existência de gravações nas quais Fernando Sarney, a sua filha Maria Beatriz e o senador José Sarney cuidam, a pedido dela, da nomeação do seu namorado Henrique Bernardes para o cargo de assessor parlamentar. O lugar tinha ficado vago porque o seu ocupante, Bernardo Brandão, “meio-irmão” de Maria Beatriz, mudara de emprego. No último dia 22 de Julho, a reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo, publicou o teor das conversas. Tais conversas documentam mais do que um caso trivial de exercício do poder oligárquico e nepotismo. São uma amostra viva da absoluta naturalidade com que o clã opera para acertar o que, afinal, não passa de uma insignificância - o salário da vaga era de R$ 2,7 mil - perto dos valores com que a família Sarney lida com desenvoltura, a julgar pelo retrospecto.

PORÉM, o coronelato político também se mantém com miudezas - nomeações de parentes, pequenos favores a colegas, amigos e agregados, uma boa palavra junto ao interlocutor certo para aliviar a dor de cabeça de um apaniguado, entre outros procedimentos do gênero difíceis de entender longe dos costumes e da lógica dos grotões brasileiros. Mais difíceis de entender, por exemplo, do que um desvio de R$ 500 mil de um patrocínio cultural de R$ 1,3 milhão, como o que a Companhia Petrobrás S/A concedeu à Fundação José Sarney. O que importa, em todo caso, é o modus operandi. O episódio da boquinha no Senado Federal começa em 30 de Março do ano passado com uma ligação de Maria Beatriz para o pai, Fernando Sarney. "Você acha que dá pro Henrique entrar na vaga dele (Bernardo) ou não?", ela pergunta. "Podemos trabalhar isso sim", responde, evidentemente sem se dar conta da ironia que o verbo embute nas circunstâncias.

E JÁ nesse primeiro movimento se descortinam as relações espúrias entre o filho do poderoso senador Sarney e o também poderoso, à sua maneira, Agaciel Maia, a quem o pai nomeara diretor-geral do Senado Federal 13 anos antes. "Amanhã tu tem que me ligar, pra eu falar com o Agaciel", cobra Fernando. No dia seguinte, ele contará à filha que pediu ao outro, que alegara não ter autonomia para atendê-lo: "Pelo menos, ô Agaciel, segura a vaga”. Promete "falar com papai ou mesmo com o Garibaldi (o então presidente do Senado Garibaldi Alves – PMDB/PB)". A relutância de Agaciel, que nem sequer aceitara ficar com o currículo do candidato da família, leva Maria Beatriz e Fernando a acionar o avô e pai. Telefona daqui, telefona dali, finalmente o empresário fala com um ajudante de ordem do senador Sarney e abre o jogo: "O irmão da Bia, quando papai era presidente do Senado, eu arrumei emprego pra ele lá. Ele agora tá saindo e eu liguei pro Agaciel pra ver a possibilidade de botar o namorado da Bia lá. Porque me ajuda, viu, é uma forma e tal de dar uma força pra mim". Pouco depois, filho e pai conversam. Zé Sarney lhe pergunta se já tinha falado com Agaciel. Ao saber que sim, acede: "Tá bom. Eu vou falar com ele". E aproveita para informar que "ontem foi assinado o negócio da TV de Estreito, a repetidora (do grupo familiar)". O filho exulta: "Beleza, ótima notícia, tá, paizão, obrigado". Passados oito dias, Agaciel Maia assina o ato - secreto - de nomeação do namorado da neta do senador. Um entre 544, pela mais recente contagem. Outros serviram para nomear ou exonerar um irmão, uma cunhada, um neto e sobrinhas do cacique maranhense.

ESSE que "não é uma pessoa comum", como o vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), teima em argumentar desde a primeira vez que saiu em defesa do aliado maranhense. Zé Sarney, efetivamente, é o chefe incomum de uma tribo predatória que perpetua no Brasil do século 21 a histórica tradição de fazer do Estado um privilegiado território de caça.