Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, março 30, 2006

Talibambas

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Não é de hoje que o Samba vem discutindo sua relação com o Carnaval. A reportagem assinada pelos colegas César Tartaglia e Márcia Cezimbra e publicada em edição recente da Revista do GLOBO (Jornal OGLOBO) expõe a mais recente rusga: a puxada de tapete que o Grêmio Recreativo Escola de Samba campeã do Carnaval deste ano, Unidos de Vila Isabel, aplicou logo nos mestres da arte - Martinho da Vila e Luiz Carlos da Vila. Convidada pela diretoria a concorrer ao samba-enredo da escola, a dupla de bambas do berço de Noel Rosa serviu apenas para valorizar a vitória de outrem, que afinal acabou dando a vitória à Escola na Marquês de Sapucaí...

Talvez seja oportuno, também, discutir algo que, a meu ver, tem feito tanto mal ao gênero musical quanto a clonagem anual de sambas-enredos indigentes, o pagode-mauricinho ou o aluguel das escolas a políticos, celebridades, peladonas-de-revistas-pseudomasculinas e turistas: o clichê “a resistência do samba”. Fora do Carnaval, época em que bem ou mal os tamborins soam ainda mais alto, a expressão surge quase sempre que se fala ou escreve sobre o assunto.

No entanto, é bem difícil entender contra quem o samba resiste. Parece o discurso paranóico do vosso presidente-candidato da República Luiz Inácio da Silva (que ainda insiste no “nada viu, nada sabe”). O sambista Zeca Pagodinho talvez seja, hoje, o cantor mais popular deste Brasil. A dúvida fica por conta, claro, do longevo reinado de Roberto Carlos. O nosso Zeca talvez seja, também, o maior cantor de samba vivo. Aqui, a minha dúvida fica por conta de outro grande Beto, o Roberto Silva, de 85 anos, intérprete, entre outros, dos quatro formidáveis álbuns intitulados “Descendo o morro”, do fim da década de 1950 e do começo da de 1960.

A popularidade e a excelência de Zeca fazem com que ele receba, o ano inteiro, o tipo de cobertura jornalística dedicada apenas eventualmente a um Mick Jagger: o que disse, onde esteve, o que fez, o que comeu (e sobretudo, bebeu). Os canais de TV por assinatura SPORTV (GLOBOSAT/SKY-NET), por exemplo, estava na casa do alvinegro Zeca quando ele recebeu os amigos americanos Monarco e Mauro Diniz (da Portela) para assistirem à decisão da Taça Guanabara de Futebol deste ano. E o anfitrião — a quem assisti pela primeira vez em 1986, no velho campo do América, num showmício do saudoso caudilho Leonel de Moura Brizola com a presença da também saudosa Jovelina Pérola Negra e o grande Almir Guineto — já foi até garoto-propaganda disputado por duas das principais marcas de cervejas do País.

Cabe, então, perguntar: a que resiste o Samba, se a sua face mais visível goza deste merecido prestígio na grande mídia? A que resiste o Samba, se ele é, há décadas, o ramo mais robusto da nossa música, transmutando-se na Bossa Nova, influenciando o pessoal dos festivais e da Tropicália, fundindo-se ao Pop-Rock nativo? (Isso num dos três países do mundo que mais escutam a própria música; os outros, a propósito, são os EUA e o Japão.) A que resiste o Samba, se o culto a ele movimenta as casas noturnas do Bairro da Lapa , no Rio de Janeiro; do Bairro do Bexiga, em Sampa; e em todos os bairros onde a boemia tem abrigo nesta Belo Horizonte?

E, no entanto, ouvimos e lemos que o bairro sedia “a resistência do Samba”...

Todo clichê, ao imobilizar a fala, imobiliza também o pensamento. O que se quer dizer quando se diz que uma coisa resiste a outra? Que ela está na defensiva, sob ataque, está em posição inferior, de vítima. A intenção dos retransmissores de clichê pode até ser boa, calcada na lembrança da antiga perseguição referida em “Agoniza mas não morre”, do mestre Nelson Sargento da nossa Estação Primeira de Mangueira. Contudo, na prática, eles diminuem o gênero que pretendem engrandecer.

O Samba não é escravo, o Samba é senhor. Dizer menos que isso de um gênero musical que vive em, além dos já mencionados, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nei Lopes, Jamelão, Dona Ivone Lara, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Beth Carvalho, Walter Alfaiate, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, soa-me até ofensivo. Invocados pela “resistência do Samba”, estes nomes acabam é servindo de álibi para a abolição de todo espírito crítico.

Como tal retórica tem caráter patriótico, um mero senão equivale a alta traição. Os bambas são usados, dentro desta lógica, exatamente como Martinho e Luiz Carlos foram usados no concurso para a escolha do samba de enredo da Vila Isabel neste ano: para referendar gente sem o seu talento. Porque é uma impossibilidade estatística-estética que não haja disco ruim de Samba, que toda jovem cantora seja maravilhosa ou que todo velho sambista obscuro seja uma preciosidade.

Admitir isso, todavia, seria crime de lesa-pátria. Então, tome elogio à “resistência do Samba”. Este discurso paternalista e mediocrizante já teve conseqüências nefastas à cultura brasileira. Enquanto considerou-se (e foi) merecedor de “uma força” do Estado e da crítica, por exemplo, o nosso Cinema patinou. Hoje, mesmo ao largo da retórica nacionalista, a falta de senso crítico alimenta a nostalgia esterilizante do Rock dos anos 80.

O conservadorismo é, por sinal, outra faceta da “resistência do Samba”. Dois anos atrás, lá mesmo na AGÊNCIA O GLOBO, o colega jornalista Paulo Roberto Pires, ao defender o rapper Marcelo D2 numa discussão com os xiitas do gênero, criou um termo feliz: talibambas . Foram eles que pediram para Mart’nália (filha do Martinho da Vila) tocar mais baixo seu pandeiro numa roda de Samba na Lapa, como ela se queixou aqui, também há dois anos, ao repórter João Pimentel. Recentemente, outro renovador do Samba, Leandro Sapucahy, teve até dificuldades de se apresentar no bairro. Só conseguiu graças ao aval de Zeca Pagodinho, que participa de seu ainda inédito CD, bem como Marcelo D2. Aos ouvidos do pessoal entrincheirado no passado, Sapucahy comete a heresia de lançar uma ponte do samba ao rap, falando de tráfico, mineira, bala perdida, Nextel. De tanto proteger o gênero, os talibambas perigam sufocá-lo. Afinal, como diz o samba de Aluizio Machado, “água demais mata a planta”.