Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, janeiro 19, 2010

O retorno ao estado de natureza!

O EMBAIXADOR do Haiti em Brasília (DF), Idalbert Pierre-Jean, confirmou que as necessidades daquele país caribenho são infinitas. Pierre-Jean se referiu, naturalmente, à multiplicidade de formas de socorro internacional para a desesperadora situação de seu povo, depois do terremoto do último dia 12, Terça-feira, que praticamente pôs abaixo a capital haitiana, Porto Príncipe, deixando um número ainda indeterminado de vítimas - o presidente haitiano René Préval falou em até 100 mil mortos; o primeiro-ministro Jean-Max Bellerive mencionou o dobro disso. O Brasil perdeu uma figura excepcional, a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns, de 75 anos. Mas as necessidades do Haiti eram já infinitas antes da catástrofe: necessidades materiais e todas aquelas que se possam imaginar para dar um semblante de país à colônia francesa que conquistou a sua independência em 1804 - e, desde então, com breves pausas, tem passado por abalos políticos e convulsões sociais que justificam a amarga metáfora de que a sua única instituição consolidada é a da violência.

AO LONGO de Abril de 2004, depois da onda de distúrbios populares - sangrentos como todos quantos os antecederam - que derrubaram o então presidente Jean-Bertrand Aristide, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) para estabelecer a segurança e a ordem pública, incentivar o diálogo político e garantir a realização de novas eleições presidenciais em 2006. Com 9 mil militares de 17 países, dos quais cerca de 1.300 brasileiros, e perto de 500 civis, sob o comando do Brasil, a Minustah era a incubadeira do que um dia poderia vir a ser um Estado funcional no Haiti. A sua base principal foi uma das raras edificações grandes de Porto Príncipe a não desabar neste terremoto - um acaso carregado de simbolismo. O Brasil perdeu pelo menos 17 militares, além do vice-representante da ONU, Luiz Carlos da Costa, mas os seus camaradas estão envolvidos "de corpo e alma", diz o porta-voz do Exército Brasileiro, na ajuda à população local.

OS ÚNICOS homens uniformizados, de fato, que apareceram nas fotos da devastada capital no dia seguinte ao terremoto foram os capacetes azuis da ONU. No mais, "eram os civis que estavam tentando, com as mãos nuas, tirar as pessoas sob os escombros", apontou o chefe da representação da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti e ex-enviado especial do governo brasileiro, o cientista político Ricardo Seitenfus. "Não havia um helicóptero do governo, não havia um guindaste, um cão farejador, não havia nada", constatou, como que ecoando a fala do embaixador Pierre-Jean sobre as "necessidades infinitas" do Haiti. Se não estivesse em férias na sua cidade natal, Arroio do Tigre (RS), Seitenfus poderia ter perecido na tragédia. O prédio onde trabalhava desabou, matando, entre outros, o chefe da missão da ONU, o tunisino Hedi Annabi. Na última Quarta-feira, 13, voltou às pressas a Porto Príncipe, por "obrigação moral".

SEITENFUS até que estava moderadamente otimista com o rumo das coisas no país, antes do terremoto. "Haveria eleições para o Parlamento, no dia 28 de Fevereiro, com segundo turno no início de Março. As eleições presidenciais seriam em Novembro", relaciona. "Enfim seria um ano essencialmente político, de reforma constitucional e reformas institucionais". Agora, "o terremoto faz o Haiti voltar 15 anos no tempo", deplora. O número, evidentemente, é aleatório. O fato que conta é o súbito anacronismo a que o terremoto reduziu o programa de estabilização a cargo da ONU e, em especial, do Brasil. (O vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva, tinha uma viagem marcada para Porto Príncipe em Fevereiro próximo; poderá antecipá-la.) O Haiti provavelmente voltou a se aproximar do "estado de natureza" de que falava o pensador Thomas Hobbes no Leviatã - no qual a ausência de governo engendra a desordem e a violência. A rigor, assim como não se trata, até onde a vista alcança, de estabilizar o Haiti, reconstruir tampouco é o verbo da hora.

UMA RELEVANTE e urgente missão que incumbe ao mundo é construir ali um país com a matéria-prima da solidariedade e da iniciativa que puder despertar na sua população. A ajuda humanitária que começa a tomar corpo na comunidade internacional será forçosamente o primeiro passo de um íngreme percurso sem data para terminar. O Brasil precisa ter um papel central nesse processo, como vinha tendo antes de sua brutal interrupção. Será a melhor homenagem à memória de Dona Zilda Arns.