Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sexta-feira, outubro 14, 2011

Modelo de perversão política

AINDA na ressaca de mais de duas décadas do regime ditatorial militar, em 1988 a Constituição Federal do Brasil (CFB) foi promulgada com a preocupação de aparar os amplos poderes que o Poder Executivo tinha se concedido durante o regime de exceção, em especial mediante a Carta de 1967. Por um Ato Institucional, o general Castelo Branco, o primeiro chefe de governo naquela nova ordem, atribuiu a um expurgado e acoelhado Congresso Nacional a função de institucionalizar a chamada “Revolução de 1964”, conforme um projeto de Constituição saído pronto e acabado das entranhas do Palácio do Planalto. O texto, aprovado praticamente como foi recebido, transformou o Poder Executivo no "mais igual" dos Poderes do Estado Brasileiro. Exemplo dessa centralização hierárquica, o governo se outorgou o monopólio da edição de Emendas Constitucionais (EC).

PORTANTO, não nos admira que os constituintes livremente eleitos quase duas décadas (1986) depois se empenhassem em ir além da varrição do entulho autoritário, como se dizia à época. A ideia mestra da Assembleia Nacional Constituinte (1987-88) era não apenas enquadrar o Poder Executivo na moldura do Estado Democrático de Direito, reequilibrando a balança das instituições nacionais, mas também dar vida nova à Federação, delegando competências aos Estados e municípios. E tudo isso guiada pela premissa de que a democracia política e a descentralização administrativa deveriam abrir caminho à redução das iniquidades sociais. Acreditavam os constituintes que a CFB poderia ser a carta de alforria da população pobre e o salvo-conduto para o seu acesso à saúde, educação, moradia e demais bens públicos dos quais vivia apartada.

ISSO se traduziu diretamente na política orçamentária federal. Desde então, os governos de turno tiveram de conviver com um padrão de engessamento do destino a ser dado às receitas que lhes deixava pouca margem de manobra no uso dos recursos. Como que a afrouxar essa camisa de força, os desembolsos previstos na proposta orçamentária original ou a ela acrescidos pelas emendas parlamentares são meramente indicativos - salvo quando se tratar de vultosas rubricas pétreas, como a paga do funcionalismo público e o financiamento da Previdência e Seguridade Social, os investimentos pré-fixados para a educação e a saúde e as transferências constitucionais aos entes federativos para esses mesmos fins.

O IMPULSO modernizador do Estado, no bojo do Plano Real, levou o governo do então presidente da República, Itamar Franco (1992-94) a instituir, por iniciativa do então ministro de Estado da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), e com aprovação do Congresso Nacional, um mecanismo para tornar mais flexível a execução orçamentária. A Desvinculação das Receitas da União (DRU), como viria a ser designado, estipula que o Poder Executivo federal pode gastar como queira 20% da arrecadação. Em 2012 isso dá R$ 62,4 bilhões. O instrumento deve ser renovado por EC. A DRU vigente expira em Dezembro. Eis uma preciosa oportunidade, a enésima e de forma alguma a derradeira, para os políticos exercitarem a sua propensão para a chantagem.

É A imprecisamente denominada base parlamentar governista que saca da faca para encostar no pescoço da presidente: ou ela acede em cacifar 61% do valor total das emendas individuais apresentadas pelos congressistas - o equivalente a R$ 4,7 bilhões - ou a DRU só será prorrogada por dois anos, no máximo, e não por quatro, como seria normal. Nessa hipótese, teria de ser renovada em plena campanha presidencial. Como de costume, dinheiro para obras não é tudo para os extorsionários. Demandam outros meios de engordar o seu patrimônio político: o preenchimento de cargos vagos em órgãos como a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) e Departamento Nacional de Obras Contras as Secas (Dnocs), para citar apenas os da Região Nordeste do País. "A hora é esta, temos de estressar o governo até o limite", diz com cínica naturalidade um parlamentar que se diz "governista” e se esconde sob o anonimato.

A HORA é esta e o sistema é este - o modelo de perversão política que confronta, caso a caso, o governante não com a Oposição, mas com as bancadas dos partidos políticos que se coligaram para elegê-lo. Aos seus oportunistas integrantes, ávidos pela barganha, pouco se dá que a presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS) - ou quem quer que estivesse hoje no seu lugar - precisa da DRU como uma ferramenta adicional para limitar os danos ao Brasil da crise econômica internacional que não cessa de se agravar.