Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, outubro 09, 2005

O consolo do óbvio
WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
SETE LAGOAS (MG
)
"Maus” é uma história em quadrinhos genial de Art Spiegelman sobre a vida de um sobrevivente do holocausto, agora editada em livro no Brasil. Logo no início, o filho desse sobrevivente, nascido no pós-guerra e residente nos Estados Unidos da América (EUA), chega choroso junto ao pai. Tinha caído ao chão numa brincadeira de correr e fora abandonado pelos amigos. O pai, com o realismo herdado dos horrores da Segunda Guerra Mundial, resmunga com o sotaque peculiar de um velho judeu vindo da Polônia: “Amigos? Seus amigos? Se trancar eles em um quarto sem comida por uma semana aí ia ver o que é amigo!”.

Li esse livro ainda sob o impacto do furação Katrina, espantado com as cenas de selvageria assisti no canal FoxNews (NewsCorp/Globosat/Sky-Net), com roubos, pilhagens, assassinatos e estupros. A civilização é algo muito frágil, dizia o meu avô. É verdade, ela desaba junto com um vendaval. Ali onde o Estado desapareceu a lei da selva imperou. Hobbes tinha razão. O curioso é que, a despeito da justeza das críticas à demora no socorro às vítimas do Katrina, o mundo inteiro demonstrou que acredita num mito: uma nação, supostamente dirigida por super-homens, capaz de vencer a natureza, transformando o caos numa catástrofe limpa, ordeira, asséptica. Isso é impossível, apenas uma fantasia. Catástrofes geram mortes, mutilações, cheiro ruim, fome, dor, sede, medo, angústia. O que vimos na TV e nos jornais era o esperado: os mortos não se desesperam nunca, o desespero é sempre dos vivos. Quem sobrevive grita e chora. Alguns regridem ao estado de selvageria.

Ouvi de mais de uma pessoa que tudo isso era a evidência de que o mundo piorou. As tsunamis do início do ano, o Rita, o Katrina de agora, uma sucessão de guerras recentes, atentados terroristas em toda parte, o aquecimento global, uma multidão de pobres e miseráveis ocupando dois terços do planeta, florestas devastadas, tudo isso seria a prova de que chegamos ao fim do poço. Bobagem, o fim do poço não existe porque nunca saímos dele. O mundo está igual.

Da Idade da Pedra aos dias de hoje, a humanidade jamais experimentou períodos longos de paz, tranqüilidade, prosperidade e solidariedade. Se, hoje, o Homo Sapiens é soberano, o motivo é um só: ao fim de um longo processo, o mais evoluído conseguiu sempre exterminar todos os concorrentes que lhe foram contemporâneos; a evolução não foi uma linha reta, uns vindo antes dos outros; a convivência resultou sempre na vitória do mais bem equipado.

Da mesma forma, desde que a História passou a ser registrada, não houve um período grande sequer sem uma grande guerra, um grande extermínio. Olhar para trás é constatar que “paz” é uma palavra que só constou do nosso vocabulário como ideal. Se o leitor fizer o exercício de pensar nas guerras, partindo de hoje para o passado, verá que há uma sucessão sem-fim, uma mais dantesca do que a outra. Morrer num campo de batalha na Idade Antiga era tão terrível como morrer hoje no Iraque ou no Haiti. A diferença é que, antes, líamos os relatos a partir da pena de um poeta e, hoje, assistimos ao vivo pela TV, pela Internet; e ouvimos pelas ondas do rádio. É certo que, individualmente, existe uma imensidão de homens de boa vontade, solidários, justos, amantes da paz, mas, no conjunto, o retrato da humanidade é cru.

A comunhão com a natureza também nunca passou de quimera. Na Pré-História, corríamos de nossas presas até que arrumamos um jeito de fazê-las trocar de papel conosco. Ao longo dos séculos, devastamos todas as florestas que encontramos pelo caminho, na Europa, na Ásia, na América do Norte. A própria idealização da Natureza não passa disso: uma idealização. Um bicho come o outro, um bicho extermina o outro, e chamamos isso por um nome mais palatável: cadeia alimentar.

E Zambi sabe disso melhor do que ninguém, claro. Desde que a Abraão foi revelado o Deus-Único, o que lemos é uma seqüência de conflitos, mortes, destruição, sofrimentos atrozes: 40 anos no deserto, nações passadas ao fio da espada, e a nossa paz e a nossa felicidade sempre adiadas. Oxalá veio ao mundo numa comunidade dominada por outra, pregou e, para nos salvar, acabou crucificado, morto e ressuscitado: em nome Dele, perseguimos e fomos perseguidos. Maomé disse que trazia o último tijolo da Revelação, mas, para espalhá-la, passou por guerras em vida e viu seus adeptos se dividirem logo no momento de sua morte: até hoje, a paz e a misericórdia são ainda miragens no deserto.

São obviedades que escrevo aqui talvez como consolo, num momento em que às mazelas do mundo soma-se, para nós, a crise política que se abate sobre o nosso País. Haja estômago para tanta decepção e para tantos escândalos, com propinodutos, delubioduto, valerioduto, mensalões e mensalinhos. Mas o que é a nossa história política senão uma sucessão de pilhagens do Estado por aqueles que prometeram redimi-lo? Uma vez mais, pouca coisa mudou, já devíamos estar acostumados.

Mas esse artigo não é pessimista. Ao contrário. Escrevo apenas para demonstrar que não há novidade, estamos onde sempre estivemos. A maioria de nós vive a ilusão de que o presente é ruim em relação ao passado e que o futuro precisa resgatar o bem. Não é verdade: meu otimismo me faz constatar que o passado é igual ao presente e que o futuro, na pior das hipóteses, será apenas uma repetição do hoje. Na hipótese mais otimista, será melhor.