Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, janeiro 01, 2006

Desejo e atitude

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
RIO DE JANEIRO


Nossa espécie é engraçada. Durante séculos (e de forma aceleradíssima nas últimas décadas, e cada vez mais nos últimos anos) destruímos a maior parte das florestas, poluímos os rios e oceanos de maneira criminosa e injustificável, envenenamos a atmosfera, tornando-a mais vulnerável à radiação solar e alterando o clima do planeta, derretemos as calotas polares progressivamente semeando desastres futuros, extinguimos milhares de espécies animais e vegetais, recusamos a maior parte das alternativas de energia limpa (para proteger os interesses do capital), exterminamos povos antigos, deslocamos populações para escravizá-las, perseguimos minorias, invadimos territórios soberanos por conta de prioridades nacionais, colonizamos meio mundo, fizemos guerras vazias, transformamos o sistema de trocas de valores num cassino global, usamos nossos semelhantes como cobaias, ressuscitamos doenças enterradas, torturamos, matamos por crueldade, banalizamos e divulgamos o assassínio e as suas técnicas e instrumentos, promovemos conscientemente a fome e a pobreza, enfim, tornamo-nos, ao longo de milênios, a mais danosa, violenta, contraditória e irracional (ao contrário do que diria a razão...) entre as espécies que habitam o planeta (tudo isso acreditando na lorota de estarmos no topo da evolução) e, no momento em que nos vemos ameaçados por um meteoro em rota de colisão com a Terra — como se soube esta semana —, tratamos de tomar providências urgentes para evitar que a pedra assassina destrua a herança com que inviabilizamos o planeta, e que acreditamos (do pedestal do nosso antropocentrismo) ser obra de uma civilização inteligente.

Curioso que uma das primeiras atitudes dos astrônomos tenha sido batizar o meteoro (que poderá atingir a Terra em 2036) de Apophis — na mitologia egípcia, um espírito maligno e destrutivo, um demônio determinado a lançar o mundo nas trevas. Que falta de espírito científico... que moralismo cósmico... Apophis somos nós, pô! Se o mal e a destruição existem, eles são obras nossas. Se um demônio é capaz de mergulhar o mundo nas trevas esse demônio está no espírito da espécie que a tudo degrada, incapaz de qualquer senso de coletividade, inimiga da concórdia universal, tão múltipla em sua coleção de individualidades e belezas quanto em seu arsenal de ódios, preconceitos e paradoxos.

Não estou sugerindo aqui que os cientistas, aliados à tecnologia e aos governos, desistam de combater o Apophis, monstro inocente do éter, sem missão e sem consciência. Mas é doloroso observar a trágica condição humana de só tornar-se capaz de unir energias verdadeiramente poderosas e decisivas quando a ameaça é externa (e também nas guerras). De resto, lavamos as mãos quanto à nossa responsabilidade em ter-se o mundo tornado um lugar tão ruim para se viver.

Já escrevi antes e repito: a espécie humana é a única que se caracteriza por destruir, de maneira obstinada e planejada, os seus meios de subsistência, ao contrário de todas as outras, que agem de acordo apenas com as suas necessidades fundamentais, de forma que o impacto que causam é absorvido num sistema de compensações. Pode-se argumentar que destruir o ambiente é uma necessidade fundamental da espécie humana, o que tornaria o quadro ainda pior, a não ser, é claro, que tamanha destruição acabe resultando em algo bom mais adiante, o que é bastante improvável. Penso, sim, que somos uma espécie defeituosa. Nosso defeito tem um nome, e é freqüentemente confundido com a nossa virtude: consciência.

A chamada Filosofia da Mente — corrente dissociada da filosofia continental que estuda as particularidades dos processos mentais — costuma dividir a consciência em dois tipos: a externa — que nos leva a realizar uma série de atividades com alto grau de automatização, a ponto de sequer percebê-las (é o tipo de consciência que compartilhamos com outros animais); e a interna, essa sim exclusiva do homem, que nos leva a perguntar quem e o que somos, a refletir sobre os nossos atos a posteriori , e mesmo a estudar os processos do nosso corpo e de nossa mente.

Orgulhamo-nos muito dessa capacidade, na maior parte das vezes sem nos dar conta de que a sua virtude pode não passar de uma ilusão, um mero processo químico. Esse processo nos leva, por exemplo, a refletir sobre a inevitabilidade da morte e a não aceitá-la, ao contrário de todas as outras espécies.

É verdade que algumas culturas humanas aceitam a morte, mas a idéia predominante é a de que a finitude da vida é a tragédia maior da existência. É em nome desta noção que cometemos as maiores atrocidades. Se vamos morrer — pensamos — o tempo é curto para realizar os nossos desejos (e a pulsão de realizá-los é outro traço nosso). Então, a vida passa a ser uma corrida em busca do máximo coeficiente de prazer possível no mínimo de tempo. Compramos casas maiores, terrenos maiores, exploramos gente, terra, água e ar para ir além do que precisamos, esquecemos o próximo, esquecemos o futuro, esquecemos o passado, cultivamos apenas o gozo.

E aí, quando olhamos para Apophis e vemos nele a nossa cara, não temos coragem de nos reconhecer. Ele que morra antes que nos mate, como nós mesmos já fizemos, sem ver.

Ainda outro dia eu vi dois jovens casais, sentados um de frente para o outro, à mesa do São Firmino Bar & Botequim, no BH Shopping. Conversa vai, conversa vem, surge um celular dotado de câmera. Eles imediatamente começam a se fotografar, com naturalidade, como se o aparelho fosse parte tão integrante da refeição quanto à pizza de carne-de-sol com catupiry ou a caipiríssima servidos ali.

Às vésperas dos festejos de Fim de Ano, suplementos jornalísticos e publicitários se dedicam à infinita variedade deste objeto do desejo portátil. Há celulares que fotografam, que filmam, que baixam arquivos MP3, que gravam conversas, que acessam a web, que publicam diretamente na Internet as fotos, que sintonizam Rádio e TV, que têm games, que têm tons de chamada e alarme compostos pelo Ryuichi Sakamoto, juro (a colega Cora Rónai me apresentou um destes). Diz que há até uns que falam e escutam.
O avanço das câmeras digitais e o acoplamento delas a telefones celulares cada vez mais sofisticados transformaram todo mundo em japonês, né ? Aquele comportamento meio cômico que associávamos aos disciplinados grupos de turistas nipônicos, sempre com suas máquinas fotográficas a postos na Passarela do Samba da Marquês de Sapucaí, plano perfeito para o maior espetáculo da Terra: o Carnaval, feito aqui e exportado aos quatro cantos -, hoje está disseminado pelo resto do planeta.

Tanto que aquele velho aviso protocolar antes dos shows (“É proibido fotografar o espetáculo, a não ser com prévia autorização da casa e da produção blablablá”) parece querer revogar a Lei da Gravidade. Antes, durante e depois da recente apresentação dos “Titãs”, il miglior fabbro, na estréia da turnê nacional de lançamento do CD e DVD “Titãs ao Vivo MTV”, no Marista Chevrolet Hall em BH, por exemplo, a platéia registrava tudo o tempo todo. O palco, eles mesmos, as paquerinhas. Tipo turismo doméstico: “Estive lá.”

A praticidade das câmaras digitais permite mais e melhores fotos. Elas praticamente eliminaram a falta de foco, a má iluminação e a clássica tremida. Um enorme contingente de maus amadores foi promovido pela tecnologia à categoria de fotógrafos razoáveis. Só não há esperança, não ainda, para aqueles que mutilam seus personagens. Daqui a pouco, entretanto, soará um alarme quando a vovó estiver sendo decapitada.

Hoje, é quase impossível alguma coisa acontecer ao redor do mundo, seja na esfera pública, seja na privada, sem que uma imagem seja gerada. Celulares, máquinas e filmadoras digitais, webcams e circuitos de câmeras de segurança garantem um suprimento inesgotável para as revistas de fait divers , os telejornais, as “Videocassetadas” do “Domingão do Faustão” (TV GLOBO), as sessões das Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs) em andamento no Congresso Nacional ou os filmes pornôs caseiros estrelados pela boazuda de “SOS Malibu”, Pamela Lee Anderson.

Essa espécie de Big Brother da vida real vigia e expõe, mas também denuncia. Carrinho de bebê arrastado pelo trem em Seul. Bebê jogado pela janela do apartamento em chamas de Nova York. Refém ocidental decapitado nalgum ponto do Iraque. Prisioneiro humilhado por soldado americano em Abu Ghraib. Passageiros aturdidos nas galerias do metrô depois dos atentados terroristas em Londres. Diretor da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) subornado em Brasília (DF).

Voltemos, porém, aos dois casais mais ou menos hipotéticos lá do primeiro parágrafo. Fotografaram-se, comeram, beberam, saíram dali felizes. As imagens da noite estão lá, no celular, prontas para serem passadas para o computador, publicadas na internet ou, dependendo dos pixels da câmera, impressas em papel. Esta última opção tende a ser a mais rara: os álbuns virtuais de fotos estão substituindo os calhamaços de plástico.

Serão casados? Namorados ainda? Apenas bons amigos? Colegas de emprego? Terão acabado de se conhecer? Ou nunca mais quererão se ver antes de o galo cantar três vezes? Daqui a algumas horas, dias, alguns meses, anos, aquela noite no São Firmino talvez se torne incômoda para alguém na mesa. Aliás, desculpe, mas o pessimismo me obriga a escrever que mais cedo ou mais tarde aquela noite no São Firmino se tornará incômoda para alguém.

Um pé-na-bunda aqui, um chifre lá, o tédio em todo lugar. Como a própria virtualidade da imagem a torna mais frágil do que a antiga cópia em papel, basta selecioná-la e deletá-la. O computador vai perguntar: “Tem certeza que deseja enviar ‘joão & maria na lapa’ para a ‘Lixeira’?” Você: “Sim”. Depois é só esvaziá-la. Acabou-se. Aquilo nunca existiu de verdade. Se mais relacionamentos efêmeros são registrados, também não é necessário um grande investimento emocional para apagá-los da memória — do computador.

Rasgar uma fotografia em papel exigia muito mais. Havia todo um simbolismo em des-pe-da-çá-la, como se ela fosse uma bonequinha de vodu. Até vê-la desbotar tinha lá a sua significação dramática, como cantou lindamente o Billy Bragg, comparando um polaróide que esmaece à lembrança de um amor julgado eterno no dia de São Swithin. É preciso desenvolver uma nova poética para nossa relação com a imagem digital.

Também, nos últimos anos, uma meia dúzia de expressões irritantes caiu no gosto de uma certa parcela da sociedade pretensamente moderna e alternativa, principalmente dos que se querem fashion e dos que se gabam de ter algo vago que se autoproclamam de “atitude”, e que é vendida como biscoito nos guias de comportamento e anúncios de publicidade. São expressões de uma pobreza absurda se a gente considerar o estupendo leque de gírias e modos do falar coloquial brasileiro, e são usadas como bordões da falta de inteligência que se apoderou das cabeças mais variadas.

“Ninguém merece”, “fala sério”, “vamos combinar”, “básico” — e a campeã de todas, a quase-fascista “menos” —, são expressões reducionistas e opressivas que, na essência, têm a mesma função: excluir de uma discussão (ou da convivência entre pessoas e grupos) tudo que apareça como desmedido, “estranho”, não adequado a um certo senso comum que nunca se estabelece claramente (pois, no fundo, é puramente arbitrário).
O incrível é que estas expressões são usadas principalmente por gente “livre” que, por lidar muito mal com a própria liberdade, anseia por um “equilíbrio elegante” no elástico das relações. São anarquistas enrustidos, performáticos ponderados, loucos customizados, vanguardistas formatados, pansexuais homofóbicos. Para livrar-se da inconveniência do que sentem, essas pessoas procuram (e encontram) no vizinho o excesso, o ridículo, o absurdo, para se encaixarem em algum figurino que as impeça de meter o pé na jaca que tanto lhes atrai.

Assim, o sujeito que, por falta de conhecimento, coragem ou espírito argumentativo, não quiser aprofundar um assunto, dirá: “Vamos combinar que isso não tem nada a ver. Vamos combinar que fulano é uma mala. Vamos combinar que gostar disso é muito cabeça. Vamos combinar. Vamos combinar”.

Na verdade ninguém combinou nada, mas a maioria concordará, estampando sorrisos inexpressivos ou tolos, pois assim é mais fácil beber a sua champanhota sem aporrinhação, “está tudo combinado até prova em contrário, imagina se eu estou aqui pra contrariar”.

Os poucos que discordarem não terão forças para reagir, ou buscarão abrigo numa roda mais viva, se a encontrarem no deserto de vida inteligente que domina os salões.

O “fala sério” e o “ninguém merece” têm mais um efeito de criar cumplicidades redentoras entre espíritos frívolos, crônica ou temporariamente incapazes de conviver com a diversidade de personalidades e de discursos que os cercam. É como fazer uma listinha de “melhores ou piores pessoas e atitudes”, em vez de pensar sobre o que se diz ou procurar entender melhor o mundo e as idéias.

Mas não há nada pior e mais violento que o “menos, fulano, menos” — em geral acompanhado de um gesto de mão pedindo moderação. O “menos” aplica-se a tudo. Se o Zé Mané resolver contar um detalhe um pouco mais picante de uma história pessoal ou de sua própria intimidade e o Maurício julgá-lo inconveniente, o Maurício, serelepe, vai logo dizer: “Menos, Mané, menos...”

Notem que o Maurício provavelmente é o cara mais fofoqueiro da paróquia, veste-se com umas roupas espalhafatosas, mas sua “atitude” tem alta aceitação. Diante dele, o Mané, se não for peitudo, vai calar a boca, sorrir amarelo, quando o mais sensato a fazer seria mandar o Maurício à Carácas junto com sua atitude.

Se a Mariínha der uma gargalhada escandalosa, de opereta (porque essa é a gargalhada de Mariínha quando ela está feliz!), a Patrícia, que é uma perua de dar dó mas tem a personalidade mais forte que a da Mariínha (e usa umas grifes feias consideradas in), vai intervir: “Menos, Mariínha, menos” — e a Mariínha vai engolir a gargalhada e pensar duas vezes antes de rir desse jeito. Depois, vai ter úlcera aguda por não ser mais ela mesma.

Outro dia, numa festa no Baronetti, aquele night-club in lounge da Rua Barão da Torre em frente à Praça Nossa Senhora da Paz em Ipanema, assentado nas antigas instalações do “santuário” Hippopotamus (Zona Sul do Rio de Janeiro), levei um “menos” na cara que me deixou desconcertado.

Estava dançando com a minha Ellen e a nossa fiel escudeira Alessandra quando uma outra amiga de príscas eras, a Sandrinha, recém-chegada de Londres se aproximou e pôs a mão no meu ombro. Eu virei e a abracei soerguendo-a num demorado cumprimento de boas vindas. Depois dançamos juntos, celebrando a alegria do encontro. Então, eu que estava num leve pileque (e ela idem) entramos numa de selar o evento com um beijinho debochado, uma esculhambação básica (aaargh!).

Mas, um outro amigo ali presente, logo ele, um dos sujeitos mais pirados e barulhentos e alternativos e vanguardeiros e bizarros e inconvenientes e cheios de atitude que conheço, resolveu me censurar. “Menos, Wlad, menos...”

Mandei-o pentear macaco, pois não engulo essa bobagem entre amigos. Ainda se fosse alguma coisa séria, uma inconfidência covarde, uma traição, um gesto agressivo, um ato de humilhação, normalmente tão bem aceitos...

Menos é a vovozinha. Eu quero mais. Quem não quiser ver ou escutar que vá embora. Ou, se quiser ficar, que responda, diga alguma coisa útil, desenvolva. Às favas com a etiqueta castradora dos modernos, disfarçada em suposta “atitude”. Pro quinto dos infernos os maledicentes que posam de equilibrados quando têm os piores vícios do espírito, a espuma do ódio a escorrer pelos cantos dos lábios.
Eu ia terminar a crônica dizendo que o “menos” é a síntese do tempo em que vivemos. Um tempo em que tudo que resvala no complexo ou no inesperado é excesso. Um tempo em que qualquer elaboração é papo-cabeça, e papo-cabeça é escória. Um tempo em que só o simples vive. Tempo em que só o resumo vale, o saber é lixo.
Eu ia dizer que, enquanto isso, os verdadeiros donos do poder acumulam História e informação em seus mega-agadês para, um dia, dominar o mundo dos convenientes — hordas cheias de atitude e sem conteúdo.
Eu ia dizer que, no futuro, cérebros vazios serão escravos dos barões do saber. Mas não vou dizer nada disso, tenho muitos amigos partidários do “menos”. Eu mesmo já andei adotando umas tolices assim.
Digo apenas: no novo ano que se inicia, seja “mais”. “Mais” é dez. “Menos” é zero.