Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, agosto 31, 2006

Fundamentos essenciais

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Ainda criança eu fazia judô na Escola Yatagã, no Bairro Anchieta, Zona Sul desta Capital das Montanhas, onde nasci e vivo até hoje. E em meio às aulas de teoria do Judô, líamos, em voz alta, lições da filosofia oriental. Certa vez lemos um pequeno texto sobre racismo, em que uma criança negra e outra branca, depois do primeiro encontro, diziam uma para a outra: “Esta é a diferença!”.
O professor, a quem chamávamos mestre, um japonês (de trinta e poucos anos) que havia muito vivia no Brasil, teve de nos explicar por que aquelas crianças demoraram tanto tempo se medindo para chegar a uma conclusão tão óbvia, que nós, brasileiros, sempre conhecemos: a diferença entre um negro e um branco é só a cor da pele. Eu tinha nove anos, e o professor nos falou do líder pacifista norte-americano Martin Luther King, do seu assassinato, da sua luta pelos direitos civis. Aquilo me marcou.

Antes que eu receba cartas e mensagens iradas dizendo que essa história é a prova de que sou um privilegiado de berço, corro para dizer que, órfão de pai, minha mãe que estudou somente até o Curso Científico (hoje referendado Ensino Médio), tendo passado por uma infância miserável ao lado dos seus oito irmãos, trabalhava a frente de sua pequena cantina (fornecendo marmitex), das cinco horas da manhã, quando saía para fazer o mercado, até as oito horas da noite, quando os fregueses iam buscar o jantar e caía na cama, exausta. Não tinhamos empregados, e os parcos rendimentos da cantina mal eram suficientes para nos sustentar. Com uma sabedoria imensa, porém, tudo o que ganhava gastava na minha educação, pelo que serei grato a ela eternamente. Ela perdeu a saúde, mas me legou uma lição que, acredito, a maior parte dos pais deixa para os filhos: educação e trabalho, eis a chave para que alguém alcance seus desejos.

Essas duas pequenas histórias explicam um pouco por que me dedico tanto, neste debate nacional, a escrever sobre cotas: eu acredito que todos devemos ter as mesmas oportunidades, que ninguém é melhor do que ninguém, que a educação é o motor para superar obstáculos e que o trabalho é a fonte de renda que mais satisfação dá a uma pessoa. Nossa legislação já nos garante direitos iguais, e na era republicana sempre garantiu. Vivemos num País em que a miscigenação era, até bem pouco, uma realidade que costumávamos comemorar. A Educação é ainda um flagelo, mas se um dia o Governo investir nela pra valer, com seriedade, os brasileiros de todas as cores e de todas as origens terão chances iguais de superar as suas dificuldades e de se realizarem em seus trabalhos. Querer dividir este País em raças, repito, é um erro, porque antes das elites, o que se cindirá será a pobreza: a cor da pele dará privilégio a um pobre e o negará a outro. Isso é explosivo.

Como disse neste mesmíssimo espaço na última Segunda-feira, 28, o meu sonho é o de Martin Luther King: quero viver numa sociedade em que as pessoas sejam julgadas pelo seu caráter e competência, jamais pela sua cor. É bom lembrar que há anos se debate nos Estados Unidos da América (EUA) se Luther King, hoje, apoiaria ou rejeitaria cotas, o que é uma discussão estéril: o herói está morto, e querer extrair dele um pensamento numa ou noutra direção é algo a que todos têm direito sem que, no entanto, tenham jamais inteira razão.

John David Skrentny, sociólogo norte-americano da Universidade da Califórnia, Campus San Diego, escreveu o que é considerada a mais completa pesquisa histórica sobre políticas afirmativas nos EUA, compilada no livro recém-lançado no Brasil: “Ironias das ações afirmativas: política, cultura e justiça na América”. Ontem, eu perguntei a Skrentny o que ele achava do debate que se trava no Brasil no momento. Ele me respondeu que acredita que, privadamente, Luther King e outros líderes achavam que ações de preferência racial ajudariam os negros norte-americanos. Mas acrescentou: “No entanto, creio também não ser de muito interesse o que eles pensavam ou discutiam reservadamente. O importante foram suas ações públicas, seu ativismo político. Quando estudei a história desses fatos, quis saber o que os líderes do movimento de direitos civis reivindicavam ou exigiam do governo federal. Não consegui encontrar um só caso em que Luther King reivindicasse ou exigisse do governo uma política preferencial de emprego com base em raça”.Skrentny é simpático a políticas afirmativas.

O que ninguém discute é que o cerne do pensamento de Luther King é que uma sociedade não deve dividir as pessoas em raças, porque somos todos iguais, temos todos os mesmos direitos e devemos ter todos as mesmas oportunidades. Não assinei o manifesto contra as cotas nem ajudei a redigi-lo, porque isso não me cabe como jornalista. Mas, se o tivesse feito, teria também usado o trecho do discurso de Luther King, porque considero que ele é absolutamente adequado àquilo que o manifesto prega: uma sociedade mais igualitária, mais justa, que equipe os pobres, negros, pardos, vermelhos, amarelos ou brancos, para que tenham, de fato, igualdade de oportunidades.

Outro dia, sem me citar, em sua coluna, o colega jornalista Elio Gáspari (Jornal O GLOBO/AGÊNCIA O GLOBO) voltou ao tema, e com acusações ainda mais pesadas aos que são contrários às cotas. Em relação a um professor norte-americano contrário a políticas de preferência racial, Gáspari escreveu: “Wood é contra as ações afirmativas, mas é um sujeito decente. Entrou na briga sem um tostão no bolso”. O que ele quis dizer com isso? Que os brasileiros contrários às cotas são indecentes e que se manifestam por dinheiro? Que reação eu posso ter diante disso? Dizer que indecente é a mulher do padre ou que corrupto é a mãe do vizinho? Não, não farei isso. Gáspari é uma pessoa decentíssima, honestíssima, acima de qualquer suspeita. Quando trabalhei com ele, aprendi muito, e devo muito a esse aprendizado. Ele me ensinou que não se acusa sem provas, e que as palavras devem ser medidas para que não soem como calúnias.
Vou continuar a discutir o assunto, porque ele é fundamental para o País. Mas vou debater apenas idéias. Como aprendi, vou passar ao largo do que não é essencial.