Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, setembro 28, 2005

Trapaceiros e trapalhões

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


O que de pior poderia acontecer para a imagem pública do parlamento está acontecendo nesta disputa que se define hoje pela presidência da Câmara dos Deputados: o governo Luiz Inácio da Silva (2003-06) liberou o dinheiro das emendas parlamentares para cooptar apoios à candidatura de seu rebento, o deputado Aldo Rebelo (PcdoB-SP); o corregedor da Câmara, Ciro Nogueira (PP-PI), “filhote” do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti (PP-PE), descumpriu o acordo firmado entre os candidatos para baratear a campanha e contratou dezenas de garotas tidas como modetes (que não são) para desfilarem com camisetas baby look pelos corredores do Congresso Nacional, e tanto o governo quanto a Oposição estão fazendo manobras regimentais para votar apressadamente reformas eleitorais que beneficiam especialmente o baixo clero parlamentar.

O presidente em exercício, deputado Thomaz Nono (PFL-AL), convocou sessões da Câmara dos Deputados para Segunda e Terça-feira, enquanto o líder do governo, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) anunciou que retiraria da pauta três pedidos de urgência constitucional de projetos de lei, para permitir que a reforma política possa ser votada antes do prazo fatal.

Há dois projetos de lei que mudam a legislação eleitoral: aquele já aprovado pelo Senado Federal que procura reduzir os custos das campanhas eleitorais proibindo showmícios e simplificando os programas gratuitos de televisão no período de propaganda eleitoral, que também teria a duração encurtada; e outro que altera fundamentalmente as regras eleitorais, instituindo o financiamento público de campanha, o voto em lista fechada e a proibição de coligação na eleição proporcional.

Este provavelmente não será aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados, mas contém um dispositivo que pode ser destacado e aprovado separadamente: a flexibilização da cláusula de barreira que entrará em vigor na próxima eleição, e ten preocupado bastante aqueles membros de pequenos partidos políticos. Pela lei em vigor, os partidos que não obtiverem na próxima eleição pelo menos 5% dos votos nacionais, sendo que 2% em nove estados no mínimo continuarão a atuar, mas perderão algumas regalias no Congresso Nacional.

Não terão direito ao fundo partidário, nem horário de liderança nem gabinete, e não poderão participar de comissões nem da Mesa Diretora. Para se ter uma idéia do quanto representa o fundo partidário, os partidos receberam ano passado quase R$ 122 milhões.

Se estivesse em vigor nas eleições de 2002, somente sete partidos teriam superado essa cláusula de desempenho: PT, PMDB, PSDB, PFL, PP, PSB e PDT. No próximo ano, perderiam importância parlamentar os partidos beneficiários do mensalão petista: PL, PTB e PP, afetados pelo escândalo. E também partidos políticos tradicionais como o PCdoB, o PV e o PPS. Esses partidos ameaçados estão trabalhando em duas pontas: tentam cooptar políticos bons de voto para a legenda até a próxima Sexta-feira, 30, e mexem seus pauzinhos para abrandar as exigências.

Os partidos clientes do mensalão perderiam cada um, além do tempo de TV, entre R$ 7 e R$ 10 milhões. Nada menos que 12 partidos não têm representação no Congresso Nacional, mas ganham o fundo partidário e têm tempo na TV: os 12 partidos além do Prona de Enéas Carneiro (SP), que tem dois deputados; o PSC da base parlamento do casal Rosinha Matheus e Anthony Garotinho (PMDB-RJ), que tem quatro deputados e o PRP, que tem um deputado, receberam no conjunto quase R$ 316 mil no último ano.

Antes da crise do mensalão, o PT cedia às pressões de seus aliados e sempre trabalhou a favor da flexibilização das regras. Durante a crise, anunciou que mostraria de que lado estava apoiando uma reforma política que limpasse a imagem do parlamento, e se declarou a favor da manutenção das restrições da lei.

Mas hoje que conseguiu um pouco de fôlego político com o arrefecimento da crise, já está o governo Luiz Inácio da Silva novamente às voltas com instrumentos de sedução dos partidos parceiros no mensalão, tentando reorganizar sua antiga base eleitoral para eleger Aldo Rebelo presidente da Câmara dos Deputados.

Nesse caso específico, o interesse do PCdoB é igual ao de PL, PP e PTB, que, inflados artificialmente pelo valerioduto do mensalão, perderão toda essa gordura para outros partidos nos próximos dias e precisam acabar com a cláusula de barreira para poder ter dinheiro público e tempo na televisão, e ganhar peso político nas negociações para cargos na mesa e comissões.

Há ainda em tramitação duas emendas constitucionais: uma amplia até 31 de Dezembro o prazo para mudanças nas regras das eleições de 2006, que, pela lei em vigor, termina na próxima Sexta-feira, dia 30; outra acaba com a obrigação, que vigorou na última eleição presidencial, de as alianças políticas nacionais determinarem as regionais, a chamada verticalização eleitoral.

Há quem afirme que os dois temas, por tratarem de reformas na Constituição Federal, podem ser alterados a qualquer momento, sem obedecer ao prazo estipulado em lei para mudanças eleitorais. Mas esse entendimento não é consensual no Congresso Nacional. Existem políticos que consideram que votar essas questões sem obedecer aos prazos da legislação eleitoral fere a “segurança da ordem jurídica” prevista na Constituição Federal. Uma decisão desse tipo poderia ser questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), trazendo problemas para a próxima eleição.

Dentro desse quadro político, que regrediu aos piores momentos, existe a possibilidade concreta de que a candidatura de Ciro Nogueira ganhe força e vá para o segundo turno na eleição desta tarde-noite, o que colocaria Governo e Oposição diante do mesmo dilema: vale a pena vencer apoiando o retorno do espírito severino à presidência da Câmara dos Deputados?

A Oposição, que não resistiu à tentação e votou em Severino Cavalcante em Fevereiro para derrotar o Governo, pode se defrontar novamente com a mesma situação. E os governistas, que acusam a Oposição de ter sido irresponsável, poderão ter que mostrar que não é irresponsável igualmente. De qualquer maneira, uma coisa já é certa: o baixo clero parlamentar tornou-se o fiel da balança na Câmara dos Deputados, o que não é bom sinal.

Com dez candidatos anunciados, hoje a eleição do novo presidente da Câmara dos Deputados vai para um segundo turno noite adentro. E mesmo que ninguém renuncie à candidatura, a disputa já se afunilou entre três candidatos: o nome da base governista, Aldo Rebelo; o candidato da Oposição PFL-PSDB, Thomaz Nonô; e o novo príncipe do baixo clero, Ciro Nogueira.

Agora temos de convir: todo país tem problema político. A Alemanha, que os nossos políticos, analistas e estudiosos dizem ter o melhor sistema eleitoral, está num impasse eleitoral; a Itália, que passou por uma limpeza política que é o sonho de todo país envolvido em corrupção, é governada pelo homem mais rico e influente da Península, Silvio Berlusconi, e acaba de descobrir um estranho caso no Banco Central de lá. Nos Estados Unidos da América (EUA), com mais de 200 anos de democracia, o órgão que cuida de emergências era dirigido pelo ex-presidente da Associação Internacional do Cavalo Árabe, indicado por ter sido colega de quarto na universidade do antecessor no cargo.

Só caiu a ficha do presidente da República dos EUA George W. Bush de que a indicação política do presidente da Agência Federal de Administração de Emergências (Fema) foi um erro, quando se descobriu que criar cavalo árabe não qualifica ninguém para dirigir o socorro às vítimas de tragédias, e quando, conseqüentemente uma metrópole estava destruída com cadáveres de negros pobres boiando no Rio Mississipi e mortos apodrecendo nas ruas de Nova Orleans.

No Brasil, descobriu-se que administrar parques e jardins não qualifica ninguém para coordenar um hospital de excelência quando a indicação política para o Instituo Nacional do Câncer (Inca) levou o hospital ao colapso ao seis meses de (des) governo Luiz Inácio da Silva. A lição lá e aqui é que as indicações políticas, sempre defendidas como direito natural do vencedor das eleições, têm que ser limitadas pelo bom senso e pelo respeito aos cidadãos. Não somos os únicos a errar, mas, reconhecido esse ponto, é melhor constatar que certos fatos que aceitamos são inaceitáveis.

O que se pode dizer do STF mandando soltar o coronel Pantoja? Ele foi condenado por massacre, com pena confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O ministro Nelson Jobim presidente do STF, que trata de questões constitucionais, mandou soltar o coronel sob argumento de que ele pode ainda recorrer ao STF, portanto não esgotou todas as suas possibilidades de defesa. Isso posto, todos os presos com possibilidade de recurso deveriam ser igualmente soltos. Direitos constitucionais são de todos, não podem ser exclusividade do coronel Pantoja. O Supremo é o mesmo que soltou o ex-banqueiro Salvatore Cacciola que, em seguida, claro, fugiu para a Itália.

No Acre, terra natal da ministra de Estado do Meio Ambiente Marina Silva (PT-AC), onde morreu líder seringueiro e ambientalista Chico Mendes, o ar está irrespirável há mais de um mês, nem é possível ver o céu azul. A fumaça das queimadas é tanta que há acreanos saindo às ruas com o rosto coberto por lenços.

No Congresso Nacional, já houve 237 trocas de partidos feitas por 146 deputados apenas nesta legislatura, mas a reforma política que tramita na Câmara dos Deputados perdeu, em algum momento, o artigo que exigia fidelidade partidária.

Um escândalo político atingiu os dirigentes do PT, do PP, do PL, do PTB, mas o mesmo projeto de reforma política dá mais poder aos dirigentes partidários, entregando a eles o direito de escolher a hierarquia de uma lista na qual o eleitor passará a votar.

O Partido dos Trabalhadores (PT) que durante mais de duas décadas se proclamou o dono da ética montou um esquema de caixa dois através de um lobista, com dinheiro de origem obscura, mas, até agora, não teve nenhum deputado cassado e vai reeleger o mesmo grupo dirigente do partido. O tesoureiro que operou o valerioduto não foi expulso do partido, que ainda lhe paga o advogado.

O dinheiro público distribuído aos partidos virou festa. No PT, é usado para pagar despesas de viagem do presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) e de seus familiares, ou do marido da ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy (2001-04). No Partido Progressista (PP), foi usado até para comprar exemplares da revista Playboy. Mas os políticos querem convencer os contribuintes de que o financiamento público de campanhas será a solução final dos nossos problemas. Eles dizem que, se houver mais dinheiro público e uma lei proibindo dinheiro de privado acaba o caixa dois e toda a sujeira das campanhas eleitorais.

O comportamento dos agentes, peritos e delegados do Departamento da Polícia Federal (DPF) costuma merecer notas mais altas do que a maioria das polícias. Mas os policiais federais lotados no Rio de Janeiro, nem sempre. Há alguns anos, houve a morte de um preso em circunstâncias estranhas (o que se deve entender como delicado eufemismo) nas instalações da Praça Mauá. Agora temos a tragicomédia do roubo dos dólares apreendidos.

Para não dizerem que neste espaço eu só comento notícia ruim, brindemos hoje o desmantelamento da máfia dos restaurantes, que lavava dinheiro sujo na contabilidade de casas caras e de boa fama culinária no Rio de Janeiro. O episódio despertou debate intenso sobre o comportamento culinariamente correto: mesmo com o progressivo desmantelamento da quadrilha, o restaurante Satyricon e a pizzaria Capricciosa devem continuar a ser freqüentados? A maioria das respostas que tenho ouvido é negativa. Isso, claro, na hipótese de que a lentidão dos processos criminais mantenha a contabilidade dos restaurantes a serviço da quadrilha.

Fosse há 20 anos, mais ou menos, muita gente abonada e de boa família não teria qualquer escrúpulo nesse sentido. Consumir cocaína ou desprezá-la era decisão baseada unicamente na opinião do interessado sobre se fazia mal à sua saúde ou não. A conclusão mais comum era de que, não exagerando, que mal que tinha? Pensava-se assim aqui — e na Europa e nos EUA também.

Hoje, a consciência social se tornou mais aguda: não se trata mais de “basta ser moderado”. Porque não está em questão apenas a saúde de cada um e sim a da sociedade toda — o consumo faz mal em quaisquer circunstâncias: corrompe a juventude e aumenta exponencialmente o índice de violência urbana.

Não há discussão: as provas se acumularam e são irrespondíveis. Se você cheira cocaína, não apenas financia a disseminação de um vício degradante: também contribui para o fortalecimento dos arsenais de inimigos mortais de uma comunidade que se propõe ser pacífica e segura. O viciado ajuda a comprar e municiar a arma que poderá, pouco mais adiante privá-lo de seus bens e, se o bandido estiver suficientemente drogado, da sua vida.

É natural, e até demonstração de consciência cívica, não dar dinheiro ao traficante em troca de uma pizza magistral ou de um belo peixe no sal grosso, por mais indireto que seja o percurso do seu dinheiro. Mas, uma vez bloqueado o financiamento do tráfico e interrompida a lavagem de seus lucros, não parece justo incluir no repúdio os eficientes e honestos funcionários dos restaurantes (ou funcionários de outras empresas do tipo mezzo-mezzo: com patrões bandidos e servidores decentes).

Pareceria mais justo conseguir forma legal de botar na cadeia quem merece e expropriar seus bens, entregando-os a cooperativas formadas pelo pessoal honesto que involuntariamente servira de fachada aos traficantes. Assim, cumpre-se a lei, bandidos são punidos como devem, funcionários competentes continuam a ganhar sua vida.

A bem da verdade o Rio de Janeiro tem estado na mais longa agonia de desgoverno de que se tem notícia no Brasil. A governadora Rosinha Matheus (PMDB-RJ) foi eleita depois que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — na pessoa do atual presidente do Supremo, ministro Nelson Jobim — decidiu que, apesar de ser a mulher do ex-governador Anthony Garotinho (1999-2002), ela poderia se candidatar para o mandato seguinte, ainda que a lei vede isso aos parentes em geral. E foi eleita depois de dizer que estava servindo aos propósitos eleitorais do marido. Nisto foi coerente: não deu até agora qualquer demonstração de ter sido eleita para servir aos propósitos dos cidadãos do Rio de Janeiro. Na campanha de 2004, o casal Garotinho rasgou a fantasia e jogou no lixo todas as restrições impostas na lei eleitoral, mas ele, certo da impunidade, está em franca campanha presidencial usando diariamente a TV, fingindo estar aconselhando casais.

Nos outros países existem crises. O presidente Bush, depois de errar muito na tragédia que se abateu após a passagem do furacão Katrina, tirou o emprego do rapaz do cavalo árabe e correu atrás do prejuízo do furacão Rita. Os partidos na Alemanha negociam a formação de uma maioria. Na Itália, há tempos os escândalos não acabam em pizza. Aqui, só nos últimos dias, as armas que foram entregues durante a campanha de desarmamento desapareceram, 2 milhões de reais de traficantes foram roubados dentro do prédio do DRF no centro do Rio de Janeiro e, não suficiente tudo isso, um juiz de futebol foi flagrado tentando adulterar resultados de partidas para favorecer apostadores. Crises acontecem em todos os países, mas, no Brasil, temos tolerado o intolerável.