Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, março 11, 2006

O doce colorido da flor

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
SÃO PAULO


Ela está de volta, depois de “Os Tribalistas”...No disco preto, ''Infinito particular'', as primeiras palavras que a cantora e compositora carioca Marisa Monte pronuncia são ''Eis o melhor e o pior de mim''. E desafia: ''Eu não sou difícil de ler/ Faça sua parte''. Ela não é tão fácil assim, mas não chega a ser insondável. De qualquer forma, vale aceitar o chamado.

No disco florido, ''Universo ao meu redor'', o que abre é a narração radiofônica, épica, da chegada do homem à Lua. Passado futurista. Segundos depois, Marisa canta: ''Quem pega no violão/ Sou eu, sou eu/ Pra cantar a novidade''. É um chamado também. Afinal, qualquer um que, em plena vigência do futuro, pega num violão para cantar a novidade merece que se pare e ouça.

O disco preto é declaradamente o mais autoral. ''Infinito particular'' é, como o próprio nome diz, um mergulho da cantora em suas próprias gavetas - anos de produção armazenados em fitas cassete, canções incompletas, idéias interrompidas. Um material que ela trabalha com diversos parceiros - os tribalistas Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, Seu Jorge, Marcelo Yuka, Nando Reis e Adriana Calcanhotto. Marisa assina a produção com Alê Siqueira, a mesma parceria do sucesso ''Os Tribalistas''.

O disco da flor, porém, talvez seja o mais autoral ''de verdade''. Nele, Marisa reúne sambas - inéditos seus com parceiros, pérolas antigas de Dona Ivone Lara, Argemiro Patrocínio, Jayme Silva, novidades de Paulinho da Viola e Adriana Calcanhotto - e faz uma leitura profundamente pessoal do gênero, com o auxílio do produtor Mario Caldato (Beastie Boys, Marcelo D2). Sem alarde em torno da batida perfeita, sem chocar tradicionalistas, a cantora constrói sua visão do samba de forma ao mesmo tempo revolucionária e sutil, à moda de Paulinho da Viola - é significativo que o músico toque violão na faixa-título do CD. E que, como um reconhecimento da ''revolução silenciosa'' de Paulinho, sua ''Para mais ninguém'' tenha o arranjo mais ''clássico'' de todo o disco.

O disco preto é, por excelência, o disco de Marisa Monte. É um chão que ela pisa sabendo, mundos que ela já havia explorado em ''Verde anil amarelo cor de rosa e carvão'', ''Os Tribalistas'' e parte de ''Barulhinho bom''. Tem o que se espera dela - o melhor e o pior, como anuncia em seu primeiro verso. Estão lá a sofisticação, o bom gosto, a musicalidade, a modernidade. Mas também uma vibração hippie inadequada, um ar sub-Novos Baianos, uma ingenuidade bicho-grilo mascarada sob sua elegância moderna.

O disco da flor, por sua vez, tem cara de projeto paralelo. Porém, é bem mais consistente que seu ''irmão'', gêmeo bivitelino, como Marisa gosta de chamar.

O disco preto, salvo poucas exceções, tem canções frágeis, apesar de muitas vezes agradáveis. Mesmo assim, pouco acrescentam ao que Marisa fez antes - é o caso da tribalista ''Vilarejo'' e da cor-de-rosa-e-carvão ''Aconteceu''. A reflexão um tanto manuelbandeirística ''Pernambucobucolismo'', lentíssima, traz um certo frescor. Mas é pouco para quem não lança um disco solo desde 1999 (''Memórias, crônicas e declarações de amor'').

O da flor está embebido do que Marisa chama de ''atmosfera do samba'', ou seja, seus temas, suas abordagens. A aproximação com os quintais soa natural. As canções de Adriana Calcanhotto ou de Marisa e seus parceiros Arnaldo, Brown, Cézar Mendes e David Byrne (ele mesmo) trazem a beleza melódica dos ancestrais e um certo cheiro bom de passado (talvez pelo olhar mais atento sobre a natureza e mais doce sobre as pessoas), mas elas não negam que falam de hoje, não fingem que estão no início do século passado. Exatamente como os Novos Baianos já faziam em 1969, quando Moraes Moreira e Galvão compuseram ''Três letrinhas'', também no CD. É NB na essência, com seus diminutivos que fazem pensar na ''abelhinha'' (''Acabou chorare'') ou no ''revira os olhinhos'' (''A menina dança'').

Se o disco preto não se sustenta em suas canções, seus arranjos garantem o prazer de quem ouve. Sua força está neles. Cada canção traz uma delicada pesquisa de timbres, com encontros inusitados e criativos que massageiam a audição em locais que o ouvinte nem imagina que exista. Um deslocado trompete mariachi soa perfeito em ''Levante'', assim como a escaleta parece ao mesmo tempo dramática e divertida em ''Pra ser sincero''. Sons orientais e eletrônicos criam a atmosfera de ''Pelo tempo que durar''. Na canção de ninar ''O rio'', sons ''aquáticos'' são extraídos da kalimba (instrumento melódico de percussão, de origem africana), simulando um gotejar. Fender Rohodes, mini moogs e hammond colorem o CD. Boa parte do disco tem o refinamento do violoncelo, violino, fagote, flugel horn - nem sempre com usos convencionais - em belos arranjos dos convidados Philip Glass, João Donato e Eumir Deodato. No geral, percebe-se um diálogo de Marisa com uma geração fervilhante de artistas contemporâneos, como Kassin, Los Hermanos, Romulo Fróes e a própria Calcanhotto.

No disco da flor, os arranjos tem todas as qualidades do preto. Mas em ''Universo ao meu redor'', eles vão além, pois estão a serviço de um projeto mais maduro. Eles ampliam os horizontes das canções - e do próprio samba - quebrando expectativas: um ukelele atuando como cavaquinho (''Vai saber?'') ou um baixo acústico (comportando-se como baixo acústico) onde se espera um violão de sete cordas (''Três letrinhas''). E o que dizer do beatbox (percussão com a boca, originada do hip hop) se insinuando sem traumas em ''Meu canário'', composta em 1950 por Jayme Silva? Em ''Perdoa, meu amor'', uma harpa entra como um violão docemente dedilhado, até se afirmar como harpa nos minutos seguintes, enquanto ao fundo ouvimos a cuíca do próprio Casemiro (autor da canção e integrante da Velha Guarda da Portela) - o resultado é uma sonoridade idílica como um musical de Hollywood e mundana como um batuque em Oswaldo Cruz.

No preto, a poesia gira em torno do amor romântico, algo naïf às vezes. ''Infinito particular'' é a mais esperta e desafiadora, com versos como ''Olha minha cara/ É só mistério, não tem segredo'' e ''Sou porta-bandeira de mim''. ''Vilarejo'' funciona bem com imagens como ''Peitos fartos, filhos fortes''. ''Gerânio'' tem algum humor e se equilibra na corda bamba entre a leveza e a frivolidade.

O da flor veste seus versos de samba. A alma do gênero está em momentos como ''Eu já não me sinto tão só/.../ Com o universo ao meu redor'' ou ''Procuro nas coisas vagas ciência'' ou ''A água do mar me bebe/ A sede de ti prossegue'' (o universal e o particular na mesma estrofe). Tão inerente ao samba como o fato de uma canção chamada ''Lágrimas e tormentos'' (Argemiro) ser sobre uma alegria.

O preto e o da flor conversam. Mas enquanto o primeiro diz que "mais puro é o amor" ("Levante") e o outro compreende, o da flor está preocupado em saber "Where are you, Statue of Liberty?" ("Onde está você/ Estátua da Liberdade?", da canção "Statue of Liberty"). E o preto entende errado.