Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, dezembro 20, 2005

De boteco em boteco e belas mulheres

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Quando entrei no Bracarense não vi que a Lavínia (Vlasak) estava ali, em plenas 4 horas da madruga. Talvez por não ser comum ver famosos no pequeno bistrô do Baixo, uma das últimas ilhas de autenticidade num Leblon já invadido pela onda de impessoais cadeias botequineiras e restauradeiras com cara de botequim paulista imitando boteco carioca (ou seja, o Rio de Janeiro está importando o modelo de pseudobotequim carioca que faz sucesso em Sampa por imitar o Rio!).

Quac! Coisa louca. Difícil de entender. Mas enfim, é dinheiro entrando, melhor botequim que apart-hotel ou flat.

Mas eu ia falando de La Vlasak e da autenticidade do Bracarense. Uma autenticidade caótica, confusa, colorida e embriagada “avant-le-verre” que talvez afugente os célebres que buscam paz na hora de beber. De fato, no Bracarense ninguém passa despercebido. Por outro lado, alguns célebres já descobriram que, no Bracarense mesmo os famosos são anônimos ao invadir aquela praia ébria de jornalistas, escritores in progress, jovens artistas plásticos, velhos e novos boêmios, livres-pensadores, livres-esquecedores, músicos que ralam na noite, gente do bairro, mulheres-e-homens-e -loucas-ou-sóbrios.

Marina Lima e Marquinhos Palmeira, Deborah Bloch, Marcelo Novaes, Malu Mader, Tony Belotto, Fernandinha Lima, Débora Falabella e Marcelo Anthony, por exemplo, são alguns que já perceberam que o Bracarense é uma espécie de antítese do lendário Antonio's, onde o cronista Rubem Braga, os cantores e compositores Chico Buarque e Tom Jobim, e o empresário e produtor de TV José Bonifácio (Boni) de Oliveira eram figurinhas fáceis. No Bracarense, o famoso esperto aparece lá pelas 2 horas da matina, quando os convivas já estão mais pra lá que pra cá. Mesmo quando são reconhecidos, nada acontecerá aos famosos, seja por falta de condições motoras de se olhá-los ou até de se caminhar para lhes pedir autógrafos; seja por absoluta falta de interesse mesmo; seja pelo mais pérfido despeito. Por isso me sinto ridículo ao perceber que, sem qualquer intenção de que isso acontecesse (pois não a tinha notado), eu, que cheguei com minha Ellen ao Bracarense, vejo-me sentado numa mesa que fica exatamente de frente para a Lavínia.

O ângulo e a posição da mesa, que me põem cara a cara com ela, conspiram contra mim, olhos injetados de insônia, a expressão de psicopata apaixonado (que nada) que pateticamente empata o papo de Lavínia com sua galera. Por sorte (ou para tornar menos convincente minha inocência) tenho às mãos o projeto de Lei que cria o Fundo Nacional para Desenvolvimento e Financiamento da Educação Básica (Funeb) enviado ao Congresso Nacional pelo Ministro de Estado da Educação Fernando Haddad (PT-RS) e preciso terminar a leitura antes do amanhecer, para entrevistá-lo dia seguinte. Sou o único naquela situação.

Nas outras mesas, pessoas acompanhadas levam seus respectivos leros na maior tranqüilidade, sem prestar qualquer atenção ostensiva a Lavínia. Decido mergulhar na leitura para escapar ao embaraço. E filmo Lavínia uma última vez, profundamente, como se enchesse o peito de todo o ar contemplativo possível e impossível.

E vejo Lavínia involuntariamente exercer sobre mim seu domínio, a meu despeito, e mergulho no uísque. Ó que figura devo eu estar fazendo, fingindo que leio, fingindo que bebo — que não a vejo — falta mesmo só o céu cair sobre as nossas, a minha, as vossas cabeças, até que nem seria má idéia.

Melhor nem ver. Com mulheres como ela, o mal-estar surge ainda que elas estejam metidas num escafandro. Ficamos, os machos sensíveis, impotentes como submarinistas russos, sem ar, enroscados numa profundeza além de qualquer resgate.

Vale para dileta amiga Bianca Lage, vale para a novíssima amiga Negra Li, vale para a Graziele Massafera, vale para a Ana Paula Arósio, vale para a Maria Fernanda Cândido, vale para a Gisele Bünchen, vale para a Alinne Moraes, vale para a Cléo Pires, vale para a Taís Araújo (ave primo Lázaro Ramos!), vale para a minha amiga Alessandra Negrini (ave compadre Oto!), vale para a Ana Paula Padrão, vale para a Débora Secco (salve Marcelo Falcão!), vale para a Luana Piovani, ufa! Vale, também, para a amiga-saudades! Maitê Proença (com a devida licença do colega Rodrigo Paiva) . Contemplá-las por muito tempo azeda o dia, à noite, a madrugada — atenção para mais uma metáfora besta, senhor presidente do momento — do velho leão da savana que cochila e espanta moscas em nosso peito. Dá desgosto, causa aborrecimento, deprime, brocha. Mulheres assim fazem parte da categoria “não pode”: deveriam ser interditadas pela Saúde Pública Mental.

A propósito, parece contraditório admirar algo a ponto de querer distância, mesmo visual? Nem um pouco. Tentei achar algumas palavras de Schopenhauer para me animar, fornir este texto e afetar alguma respeitabilidade. Porém, sob o impacto do acaso não localizei o trecho de “O mundo como vontade e representação”. Se a memória não me falha, o alemão escreveu que toda beleza tem algo de inumana.

Num registro diferente, Herbert Vianna (“Paralamas do Sucesso”) captou o espírito da coisa na letra de “Seguindo estrelas”, em especial no verso “pra não tocá-la, melhor nem vê-la”. A beleza, no final das contas, é algo intangível — até para o primo Allan, que está pegando a Grazi Massafera. Segundo alguns filósofos, porque a beleza está na reação provocada e não no objeto que a provoca. Falo de mulheres, e a quem não for do ramo e/ou não gosta da fruta cabe a substituição por homens, lógico, inclusive porque o mesmo cacoete se aplica a outros objetos do desejo... Obras de arte, por exemplo.

Louvei aqui neste mesmo espaço, no ano passado, o voluptuoso “olhar Scarlett”. Eu olho para as mulheres o tempo todo. Simplesmente não consigo deixar de olhar o que elas fazem quando não sabem que estão sendo observadas.

Scarlett Johansson é “não pode” pelo conjunto da filmografia. O caraoquê em “Encontros e desencontros”, por exemplo, está desde sempre inscrito entre as grandes cenas do Cinema que é melhor não ver: ela cantando “I’m special, so special” (de “Brass in pocket”, do The Pretenders) olhando para o Bill Murray é torturante. O ponto de “Moça com brinco de pérola” no qual, a pedido de Colin Firth, ela morde os lábios para umedecê-los, também. Vale em erotismo a obra completa de Nagisa Oshima.

Outro exemplo. Keira Knightley em “Simplesmente amor”. Sua personagem desconfia que o melhor amigo de seu marido a odeia — somos inclusive levados a acreditar ser ele gay — e por isso os enrola para não mostrar o filme que gravou na cerimônia de casamento. Ela vai tomar satisfações, descobre o vídeo numa estante, põe para rodar e descobre que, na verdade, o sujeito havia filmado uma ode à sua beleza, estrela única dos enquadramentos. O rosto de Knightley, feliz na telinha, desconcertado na telona, é de deixar qualquer macho de mau humor.

Citei dois casos sérios recentes, mas a história do Cinema está cheia de momentos-fetiche: Salma Hayek dançando antes de virar vampira, Julia Roberts experimentando chapéus ao som de “Brown eyed girl”, Audrey Hepburn comendo sanduíche em frente à vitrine da Tiffany’s, Ava Gardner respirando. Diante delas, atraído e incomodado na mesma medida, vivo num daqueles universos de Jorge Luiz Borges, no qual a ferida precede o golpe.

Golpe esse que veio no Bracarense, quando La Vlasak levantou-se de sua mesa, aproximou-se da mesa em que estávamos e com aquela meiguíssima voz nos pediu licença e me perguntou se não nos conhecíamos de outro lugar. Resposta imediata desse articulista: Claro linda! Quem não conhece o seu brilhante desempenho nas telenovelas?!...

Lavínia sorriu, curvou-se e sapecou aqueles dois beijinhos de comadre na minha face. Soergueu-se, agradeceu o elogio profissional e deixou o Bracarense com sua turma, dizendo adeus. E o articulista amanheceu ali embasbacado, à espera do providencial reboque da companheira ao despertar do sol do novo dia.