Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, setembro 18, 2005

Dois amigos de fé

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

Caía uma chuva fininha enquanto eu caminhava ladeira abaixo rumo a Região da Savassi, Zona Sul de Belo Horizonte, devagar, conversando com a minha Romana e um amigo norte-americano, John Barlow. Debaixo do braço, numa sacola de tela, levava o Affonsos, o pequeno gênio quadrúpede, fiel escudeiro da minha amada. Quando estou em Belo Horizonte sempre faço aquele percurso, sem prestar muita atenção à rua; para ser franco, apesar de ter uma disposição normalmente otimista, ultimamente ando prestando atenção mesmo é aos demais pedestres, tentando adivinhar qual deles será o assaltante disposto a me levar a carteira e/ou a vida.

Desta vez, porém, andava como se deveria andar por toda parte, isto é, de espírito desarmado, esquecido dos poucos transeuntes com quem cruzava. Estava tranqüilo com a chuva, que afasta assaltantes; preocupados com o Affonsos, que ia ser atendido na Clínica do amigo veterinário gente boa; mãos atadas a minha bela; e entretido com John Perry Barlow, que tem um dos melhores papos do mundo; e atento à calçada, em que a água e as folhas caídas desenhavam um caleidoscópio de imagens. Quantas fotos fenomenais não estavam se perdendo!

O impacto visual era ampliado pelo calçamento, se é que assim ainda se pode chamá-lo: cimento partido por raízes, mosaicos incompletos de pedras portuguesas, buracos, elevações inexplicáveis. A beleza da decadência que teria me encantado em bairros de Nova York (EUA), como o Brooklin ou o Harlem, pelo lado exótico e melancólico, me deixou muito abalado aqui na minha querida Belo Horizonte que eu tanto amo, provando que descaso na terra dos outros é refresco.

Se a rua mais famosa do bairro mais famoso da Capital das Gerais está assim, como não estará o resto!... Há quanto tempo o nosso alcaide Fernando Pimentel (PT-MG) não anda pela rua — qualquer rua? Será que ele não vê isso? Ou será que, quando sai à rua, ele também pratica a caminhada defensiva - essa moderna modalidade de passeio Tupiniquim?

Taí. De todos os viajantes que conheço, e conheço muitos, não sendo eu mesmo uma criatura particularmente estacionária, Barlow é o mais radical. Ganha a vida fazendo conferências, vai aonde é chamado e é chamado de todos os cantos. No seu último e-mail, a linha final, que dá aos amigos uma idéia de onde andará nas próximas semanas, lista 13 cidades no espaço de um mês, de Nova York a Leeds, passando por Recife, Las Vegas, Tucson, Salvador. Há muitos e muitos anos, quando ninguém sabia bem o que era Internet, ele fez questão de ir ao Mali para implantar a rede por lá. Considerava isso importantíssimo para a sua disseminação, dado que, a partir de então, qualquer um poderia cobrar das autoridades do seu país a existência da Internet, que “já existia até em Timbuktu?”, um argumento de fato eloqüente.

A nova paixão de Barlow é o Skype, o programa de voz sobre IP para o uso de telefonia via internet que deu voz à rede, aproximando ainda mais as pessoas: afinal, a banda emocional da voz é incomparavelmente superior à da escrita. Mais uma vez, nada será como antes, ainda que a gente mal se lembre de como era naqueles tempos — quaisquer tempos.

Enquanto esperávamos no veterinário, conversamos sobre o que conversam amigos que se vêem de raro em raro, mas se querem bem e se acompanham à distância; e conversamos sobre os milagres com que vamos nos acostumando, como se fosse absolutamente normal adormecer nos Estados Unidos da América (EUA) e acordar no Brasil.

Affonsos está em boas mãos. É um quadrupinho valente e duro na queda, que, tenho fé, logo conseguirá se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, com a natural graça dos Boxes.

Mas tem mais: no feriado da Pátria, fui ao lançamento do livro de um amigo, no anexo da Academia Mineira de Letras. Ao assiná-lo e dedicá-lo, o amigo olhou para mim, então disse: “Você está anárquico e organizado”. O amigo é o escritor Per Johns, que reuniu seus ensaios revisados no volume “Dionísio crucificado” (Topbooks, Rio de Janeiro: R$ 65,00).

Já li todos os seus livros desde que acompanho o seu trabalho. Li inclusive os três romances que escreveu, um deles laureado com o Prêmio Jabuti concedido pela Câmara Brasileira do Livro.

Per Johns jamais pediu que eu comentasse a leitura de seus livros. E sinto que não será necessário: todas as vezes que estive com ele, na casa de serra onde mora com a mulher e a filha em Conservatória (RJ), enxerguei, em suas visões, trilhas e trilhas de pensamento; livros e livros murmurados, que Per Johns nunca escreveu, e que expressam sua essência.

Na mente poderosa deste dinamarquês de 72 anos o caos parece estar sempre sob o controle da razão; e, num primeiro instante, sua timidez e gravidade mantêm o novato a uma certa distância. Mas, à medida que as horas vão passando, o interlocutor interessado e falante caminhará (literalmente, pois o homem caminha quatro horas por dia) lado a lado com ele. Não rumo às revelações fáceis dos falsos curandeiros e dos príncipes doutrinários da farsante auto-ajuda. Mas a uma investigação abrangente, quase externa à existência, do caos absoluto em que esta consiste.

Quando Per Johns disse que eu estava anárquico e organizado, eu perguntei: Isso é um elogio, certo? Ser anárquico é bom, não é mesmo? “Claro, claro”, ele confirmou, mas não havia nada de definitivo no que dizia. Per Johns então escreveu na dedicatória algumas palavras sobre anarquia e ordem, me dispensou e a fila andou. Duas semanas se passaram e hoje aqui estou em frente ao meu PalmTop a digitar essas linhas que serão amplamente publicadas por esta AGÊNICIA O GLOBO.

Com certeza eu alcanço a minha maturidade tão temida pelos homens com serenidade, e digo: isso só foi possível por ter tido a coragem, nos últimos anos, de contemplar o caos como uma bênção, cosmológica, divina, auto-induzida, imaginada, pouco importa, mas uma bênção.

Albert Einstein ficou ultrapassado quando se descobriu que a ordem que ele previra para o universo não valia para partículas infinitamente pequenas, de comportamento caótico e muitas vezes imprevisível e inexplicável.

Desde então a astrofísica e outras ciências vêm se preocupando obsessivamente em buscar e fixar padrões no caos, não apenas no caos das partículas, mas no caos do ser, dos mercados, da política, da economia.

Contudo, por mais que encontrem alguns padrões, a ilusão de uma ordem que paire sobre o caos é e será sempre vã. Não é à toa que tantas vezes, diante da firme percepção de que evoluímos, caímos, em seguida, num fosso e num breu ainda maiores.
Aqueles que aceitam essa dinâmica e a sua fascinante imprevisibilidade emergem mais fortes e sábios, e aprendem a colher delícias do breu, aumentar a gama dos sentidos, trazer à baila matizes e compreensões de si, do mundo, do gozo e da dor.