Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, novembro 21, 2005

Semente Rosa

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

Todo mundo sabe a história: ela ficou sentada no ônibus e por isso entrou na lista dos 20 heróis do século XX destacados pela revista norte-americana Time. Rosa Parks viveu mais meio século, desde aquele 01 de Dezembro de 1955, para não se arrepender do seu gesto. Ela morreu semanas atrás. Sobre a mulher negra do Alabama foram escritos milhares de artigos, livros, ensaios. O evento mostra que o destino é caprichoso. Era um dia qualquer, ela estava tão cansada como sempre, queria apenas ir para casa e, sem perceber, detonou uma revolução.

O motorista do ônibus em que viajava avisou à sua teimosa passageira que teria de levá-la para ser presa. “Vá em frente, você deve fazer isso”, disse Parks, ao entrar na História.

Com olhos de hoje, as leis da segregação norte-americana parecem ainda mais estapafúrdias: os negros tinham de entrar pela frente do ônibus, pagar ao motorista, sair do ônibus e entrar de novo pela porta de trás. Muitas vezes o veículo arrancava antes que o passageiro, já com a conta paga, pudesse entrar. Quanto mais bancos os brancos ocupassem, menos haveria para os negros. Eles não podiam ficar no corredor, em pé, perto dos brancos.

No Brasil nunca tivemos isso: a segregação explícita e legal. Muita gente acha ainda hoje que isso faz este País melhor, sem o feio defeito do racismo. Deve ser bom acreditar nisso. Deve ser confortável. Mas a realidade, por pior que seja, é melhor do que os escapismos. Penso assim. O racismo brasileiro foi sempre diferente, mas, também, doloroso, separador e trágico como qualquer racismo.

Os dados e os fatos estão por aí. Basta querer ver. Uma expressão da polícia diz tudo: “elemento suspeito da cor padrão”. Um verso do ex-baterista da banda carioca “O Rappa” Marcelo Yuka é mais eloqüente: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Silvia Ramos e Leonardo Musumeci fizeram uma pesquisa quantitativa e qualitativa sobre abordagem policial e discriminação. Não há dúvida de quem é a vítima mais freqüente da violência. Uma polícia como a do Estado do Rio de Janeiro, que já foi comandada por negros, que tem negros entre seus integrantes, mas que discrimina igual, como determina a ordem não explícita e não escrita.

Tudo é muito complicado no Brasil. Há mais miscigenação, e mesmo assim uma desigualdade durável tem separado os definidos como brancos dos definidos como pretos ou pardos. Há um gradiente de tons entre o pardo e o preto, mas os dois têm indicadores semelhantes, e muito piores do que os dos brancos. Nenhuma lei determinou quem mora em que bairro, mas brancos e negros estão separados na geografia das cidades. Ninguém proíbe que negros freqüentem restaurantes finos ou lojas elegantes, mas a clientela nem se dá conta da anomalia que é ser assim tão monocromática neste País multirracial.

O pensamento convencional no Brasil diz que nós os negros moramos distantes dos brancos e não freqüentamos os mesmos lugares não por sermos negros, mas por sermos pobres. Porém, a pobreza dos negros é mais difícil de romper. Quem de nós rompemos a condição de pobres somos constrangidos em ambientes aos quais, supostamente, não pertencemos.

Técnicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mediram: um ano a mais de estudo para nós os cidadãos negros representa metade do ganho de renda que um ano a mais para o cidadão branco. Em igual categoria ocupacional, os salários são desiguais. “Do que os brasileiros estão falando quando dizem que não há racismo aqui e sim preconceito social? Sinto uma discriminação racial tão palpável desde que cheguei”, disse-me uma jovem nova-iorquina, negra, inteligente, culta, que veio ao Brasil me visitar, passar alguns meses e aprender português. Voltou triste aos Estados Unidos da América (EUA), sem vontade de aprofundar seus estudos brasileiros.

Nossas crianças negras têm um índice de mortalidade infantil 50% maior do que as nossas crianças brancas. A expectativa de vida entre nós negros é a mesma que os brancos tinham há dez anos. No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pesquisado pela Organização das Nações Unidas (ONU), 60 pontos no ranking nos separam uns dos outros. O pensamento convencional dirá: nós os negros vivemos menos, morremos mais, temos piores empregos não por sermos negros, mas quando somos pobres. Por mais eloqüentes que sejam os dados, eles repetirão a mesma resposta. E esperarão que uma solução caia do céu. “Não há milagres nem remédio caseiro no horizonte do combate ao racismo”, diz Jurema Werneck no relatório do Observatório da Cidadania, do Instituto Brasileiro de Análise Social e Econômica (Ibase), que foi divulgado neste mês de Novembro dedicado a Consciência Negra. Werneck acha que o remédio é o que funcionou em outros países: políticas públicas de inclusão para corrigir as distorções seculares.

Os norte-americanos não negam. Parks recebeu ordem de se levantar do banco do ônibus no Alabama por ser negra. Parks não se levantou. Por 381 dias os negros de Montgomery não entraram nos ônibus. O mais longo boicote da História. Um impasse. A campanha dos direitos civis varreu aquele país. O líder ativista dos Direitos Humanos: o pacifista Martin Luther King foi assassinado. As políticas públicas de inclusão dos negros se espalharam desde os anos 1960 e o resultado é conhecido. Os negros norte-americanos estão lá na classe média, na classe média alta e na elite dos cidadãos da maior potência mundial. Dá para ver até no governo do presidente republicano George W. Bush (2001-8): o general do Exercito norte-americano Collin Powell e a secretária de Estado dos EUA doutora Condolezza Rice são notórios exemplares desta vitoriosa política pública de inclusão. O racismo permanece, mas a construção da igualdade de oportunidades avançou e muito em quatro décadas.

Por nosso próprio esforço, depois de engolirmos muito desaforo, com histórias emocionantes de persistência, sem ajuda do Estado e das empresas, alguns negros brasileiros desembarcamos na elite. Somos muitos os brasileiros, de qualquer cor, que hoje desafiamos o pensamento convencional e nos perguntamos: por que o Brasil é assim?

Os estudos sobre o tema se adensam, o nosso movimento negro se conecta em rede com os movimentos de outros países, as coalizões se formam. Nossas Rosas estão chegando. Nada temos a perder, a não ser essa distância que nos envergonha e enfraquece.

Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) elaborado pela ONU mostra que seria preciso aplicar, no Brasil, R$ 67 bilhões em ações voltadas para negros em saneamento básico, educação e habitação para que brancos e negros tivessem um mesmo padrão social.

No momento Ministério Público do Trabalho (MPT): tem feito uma revolução silenciosa porque está fazendo as empresas olharem para dentro de si e verem que não têm trabalhadores negros. Vem combatendo os clichês de que o racismo é um problema econômico, social e educacional. Porque, na verdade, está sendo demonstrado que há vários negros capazes em número suficiente, e eles não estão sendo absorvidos pelo mercado de trabalho. Está aí um pensamento não convencional. Pois é verdade que o racismo barra os negros em universidades, bem como, é verdade que a Universidade despeja no mercado todos os anos uma multidão de profissionais com excelente qualidade que não são absorvidos pelas empresas por puro racismo e preconceito. Os dois fenômenos coexistem na mesma medida. E a adoção do regime de quotas para os pobres e os negros é vista como remédio para ambos os fenômenos.
Porém, em toda família brasileira, o negro se faz presente, essa é outra verdade. Num País assim, a solução só pode ir numa única direção: uma política econômica que distribua renda e políticas sociais voltadas para o resgate de toda a pobreza, independentemente da cor.