Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, outubro 27, 2012

Válvula de escape de um regime falido

FINALMENTE a partir do próximo dia 14 de Janeiro e pela primeira vez desde 1961, os cidadãos cubanos não precisarão mais requerer o "cartão branco", ou visto de saída, para viajar ao exterior nem apresentar a "carta-convite" de um anfitrião no ponto de destino a fim de obtê-lo. Bastará ter passaporte e o visto do país a ser visitado. Além disso, o limite da estada no estrangeiro passará de 11 para 24 meses, podendo o prazo ser prorrogado. Por fim, se o turista aproveitar a oportunidade para mudar-se de vez daquela ilha caribenha dominada pela dinastia dos Castro desde 1959, os bens que tiver deixado já não serão passíveis de confisco.



DITO assim, pode parecer que, com a reforma da Lei de Migração recém-anunciada pelo regime ditatorial cubano, os 11 milhões de cidadãos cubanos reconquistaram um direito fundamental. Longe disso. Em primeiro lugar, o governo de Raul Castro estipulou que não concederá automaticamente passaportes a todos quantos os solicitarem - e tiverem condições de pagar cerca de US$ 100 pelo documento nesse país em que o salário médio mensal é inferior a US$ 20. "Razões de defesa e segurança nacional", além de "outras razões de interesse público", igualmente inespecíficas, sempre poderão ser invocadas para negar o documento de viagem.




DESDE logo o regime ditatorial cubano fez saber que para certas categorias de cidadãos, como atletas, médicos e pesquisadores, nada irá mudar. No retorcido jargão burocrático-autoritário de todos os regimes de força, o decreto avisa que tais cidadãos estarão sujeitos à "autorização estabelecida em virtude das normas dirigidas para preservar a força de trabalho qualificada para o desenvolvimento econômico, social e técnico-científico, assim como para segurança e proteção da informação oficial". Cubanos processados por delitos políticos, como é o caso da maioria dos dissidentes, continuarão confinados. Aos demais ainda não atingidos pela "justiça revolucionária" decerto se aplicarão as citadas razões genéricas de defesa ou de interesse público. "As mudanças são muito limitadas. A violação do direito de ir e vir vai se manter", avalia o presidente da Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional, Elizardo Sánchez. "Não se trata de uma reforma, mas de uma mudança administrativa". A presidente do grupo de oposição Damas de Branco, Berta Soler, concorda. "Aqui não há abertura, não há reformas", lamenta. De seu lado, a jornalista Yoani Sánchez, que teve 20 pedidos de permissão para viajar negados nos últimos cinco anos, escreveu no Twitter: "Já existem até piadas sobre a nova lei migratória". Se assim é, por que o decreto?



EM parte para mostrar que o programa de reformas de Raúl Castro segue adiante. No papel, pelo menos, os cidadãos cubanos foram autorizados a plantar em terras ociosas do Estado, a comprar microcomputadores e aparelhos celulares móveis, a se hospedar em hotéis antes reservados a turistas, a abrir pequenos negócios e a comprar casas e carros. O que disso resultou na prática é no mínimo incerto. Não se sabe, por exemplo, quantos dos milhares de funcionários demitidos para desinchar a administração conseguiram vencer a burocracia ainda imensa e a má vontade oficial para ingressar no setor privado. O fato é que a economia da ilha caribenha continua na “UTI” - ou na “incubadeira”, dado que na Cuba de Fidel Castro nunca houve uma economia real - sugerindo que a intenção última do decreto sobre viagens seja a de aumentar a diáspora cubana.



COMO que despachados para o exterior, muitos cidadãos cubanos deixariam de ser um fardo e aumentariam, graças às oportunidades que passassem a ter, as remessas de divisas aos familiares remanescentes. Elas mais do que dobraram desde a década passada, chegando hoje a cerca de US$ 2,3 bilhões por ano. Para a incipiente economia nacional, é uma dinheirama. O problema é que, se o decreto vingar, tornando significativo o número de passaportes a serem emitidos a partir de 2013, Cuba transferirá a terceiros, notadamente Estados Unidos da América (EUA), México e Espanha, a responsabilidade de acolher os muitos de seus "excedentes" interessados em se fixar ali. O governo dos EUA já concede por ano 20 mil vistos de permanência a cidadãos cubanos autorizados a migrar. Resta claro que o decreto é uma válvula de escape, um expediente para dar conforto a um regime falido.