Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Crime delicado

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


É difícil estabelecer quanto tempo demorou para surgir um filme brasileiro com tamanha qualidade artística em diversos aspectos que envolvem uma produção cinematográfica, incluindo aí direção, fotografia, edição, luz, arte, figurino, som, elenco, e, é claro, roteiro (a atmosfera singularíssima de Sérgio Sant’Anna, escritor e indivíduo, foi transposta para a tela com maestria). Se eu fosse chutar, antes de uma averiguação mais detalhada, cravaria uns 30 anos, tendo como marco o fim do Cinema Novo. E para citar só os grandes (em dimensão e investimento) da chamada Retomada do Cinema Brasileiro, digo, sem medo: não tem “Central do Brasil”, não tem “Carandiru”, não tem “Cidade de Deus” que seja páreo para esse “Crime delicado”, o quarto longa-metragem do cineasta paulistano Beto Brant (que também nos deu o excepcional “O invasor”). Fácil, fácil, o melhor diretor brasileiro da atualidade e um dos maiores de todos os tempos.

Aos leitores que forem às salas de Cinema conferir, instigados por tão pesadas afirmações, advirto que “Crime delicado” é um filme de pouco mais de uma hora, da turma do baixo orçamento (não deve chegar a R$ 2 milhões o investimento), que prescinde de recursos técnicos mirabolantes, além dos tradicionalmente oferecidos aos raríssimos diretores que se dispõem a fazer arte com cinema.

Advirto também que “Crime delicado” – que assistimos outro dia no Festival de Cinema de Tiradentes (Tiradentes, MG) é um filme de longos planos fixos — a câmara de Walter Carvalho testemunhando, com grande consciência, os universos e as visões dos personagens, mas também investigando suas almas, seus processos, em cenários iluminados magistralmente (deixo as intenções e as evocações para os críticos). Advirto, ainda, aos mais alérgicos à arte, e aos preconceituosos, e também àqueles que, ante as nuances do teratológico, sentem-se constrangidos a se retirar, que o filme conta a história do crítico de teatro Antônio Martins (interpretado pelo ator Marco Ricca), apaixonado por Inês (interpretada pela atriz Lilian Taublib), uma mulher a quem falta uma perna e que trabalha como modelo para o pintor José Torres Campana (Felipe Ehrenberg), cujo interesse concentra-se em sua nudez mutilada. Crítico rigorosíssimo, temido, Martins, ao ser tocado, tão forte, na carne e na alma, por uma experiência vivida com a defeituosa Inês, tem os seus paradigmas estéticos abalados, e o claustro gelado de sua empáfia intelectual desmorona em amor.

Após conhecer o trabalho de Campana, Martins, transtornado, visita Inês (que mora no ateliê do artista) de madrugada. Enciumado, tomado por fantasias onde o afã de amante e a frustração artística (o velho complexo de parasita que tanto tortura os críticos...) se misturam, Martins arvora-se o papel de herói libertador e, num discurso desesperado diante de sua amada, desqualifica sua relação com Campana — que ela sacraliza a ponto de tomar seu sobrenome, qual filha — acusando-o de explorar pornograficamente, sob disfarce de arte, sua tragédia pessoal. Inês reage, pede que ele vá embora, mas Martins, inflamado, a possui. Dias depois, é acusado de estupro, e a partir daí (vou parar de contar o filme!) se estabelece o arcabouço simbólico da obra.

Este arcabouço, muito além de comentar a relação habitualmente cruel entre crítica e arte — mais cruel ainda num momento em que os “críticos” se multiplicam às dezenas e em que opinião, gosto e consumo se confundem com apreciação artística e avaliação contextualizada de uma obra — nos leva a pensar, sim, na maneira como hoje usamos a razão para destruir tudo o que não corresponda a uma descrição “emocionalmente correta” ou “esteticamente equilibrada” da realidade. Digo isso me referindo não à arte, mas à própria manifestação dos sentidos, à própria expressão humana das diferenças individuais. Hoje a diferença, a singularidade, o específico, tudo tem um nome, um rótulo, e, uma vez classificado, o indivíduo deixa de sê-lo e transforma-se em figura de catálogo, podendo ser aprovado ou excluído (é o extermínio politicamente correto).

Voltando ao terreno da crítica propriamente dita, não posso deixar de citar a que a colega jornalista Isabela (Bela) Boscov escreveu para a revista Veja (Editora Abril). Demonstrando, por um lado, perfeita compreensão do jogo simbólico da fita, Bela, entretanto, estraçalha a obra, julgando-a manipuladora e cobrando de Brant a criação de uma personagem que lidasse com a mutilação de maneira mais “adequada”, evidenciando infelicidade absoluta, inequívoca, clássica.

Como se, na vida real, uma mulher que teve uma perna amputada não pudesse acumular em si uma singularidade na qual elementos de sua personalidade, unidos à experiência vivida, se traduzissem, por exemplo, em peculiar sensualidade, sem que isso correspondesse a uma terrível perversão que a condenasse ao fogo eterno.

Bela vai em frente e acusa o cineasta de fetichizar a amputação de sua atriz e ainda forjar um paralelo malandro entre as relações artista/modelo amputada (no filme) e cineasta/atriz amputada (no set). Ao afirmá-lo Bela veste, provavelmente sem saber, a fantasia do personagem Antônio Martins: a do crítico que, em fúria, estupra a arte. (WAPJ)