Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sexta-feira, outubro 29, 2010

Da iniquidade do nosso sistema previdenciário

A COEXISTÊNCIA de dois regimes de previdência social, o regime que atende aos servidores públicos e o regime que atende aos trabalhadores da iniciativa privada, não apenas criou categorias muito diferenciadas de aposentados, como se transformou num fator de concentração de renda - obviamente em favor dos servidores do Estado, que são a minoria, e em detrimento dos outros trabalhadores.

EM média, o benefício pago pelo Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) aos servidores públicos é 8,9 vezes maior do que o benefício a que tem direito o aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), ou seja, do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Para os aposentados de certos órgãos públicos, o benefício pode ser até 22 vezes maior do que a média dos benefícios pagos pelo INSS.

UM ESTUDO do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – subordinado ao Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão (MPOG) -, comparando a distribuição da renda entre os trabalhadores da ativa com a distribuição da renda entre os aposentados constatou que, nas últimas duas décadas, a persistência dos dois regimes foi um dos principais responsáveis pela manutenção do fosso entre os brasileiros que ganham mais e os que ganham menos.

O COORDENADOR deste estudo no Ipea, o economista Sergei Soares, não tem dúvidas de que o regime do funcionalismo é responsável pelas maiores disparidades de renda no País. Enquanto os beneficiários desse regime, em sua grande maioria, recebem praticamente o valor que recebiam quando estavam na ativa, os aposentados do INSS recebem um valor proporcional à contribuição recolhida ao longo de sua vida ativa, até o máximo de R$ 3.467,40. Mas muito poucos têm direito a esse valor; 70% dos segurados do INSS recebem um salário mínimo, hoje de R$ 510 por mês.

NÚMEROS de 2009 relativos aos dois regimes não deixam dúvidas quanto à iniquidade do sistema previdenciário. Enquanto o Regime Geral, do INSS, pagou benefícios que, na média, ficaram em R$ 657,69, o valor médio das aposentadorias pagas pelo regime do funcionalismo alcançou R$ 5.835. Embora tenha atendido 23,5 milhões de aposentados, o RGPS apresentou um déficit menor do que o Regime Próprio, que beneficiou 936,5 mil funcionários: R$ 42,8 bilhões contra R$ 47 bilhões. Isso significa que, enquanto o déficit do INSS por aposentado ficou em R$ 1,8 mil, o déficit nas contas da Previdência do funcionalismo público chegou a R$ 50,2 mil.

A DISPARIDADE não se limita às médias dos benefícios no regime do INSS e no do serviço público. Há, também, entre os funcionários, valores e regras muito diferenciados. As aposentadorias médias do Banco Central do Brasil (BC), Poder Legislativo, do Ministério Público (MP) e do Poder Judiciário chegam a R$ 15 mil por mês. Nem mesmo o Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão, que controla as aposentadorias do Poder Executivo, tem conhecimento preciso das disparidades, porque certos órgãos do governo processam suas próprias folhas de pagamentos, inclusive de aposentadorias.

EM certos casos, não apenas o valor do benefício é muito alto, quando comparado com os pagos pelo INSS, como o servidor obtém o direito de recebê-lo quando ainda muito jovem, por causa das regras da contagem recíproca do tempo de serviço. As Forças Armadas do Brasil, por exemplo, incluem o tempo nas escolas e as licenças especiais não gozadas e que são computadas em dobro. Daí haver casos de militares que passam para a reserva remunerada com pouco mais de 40 anos de idade.

O ECONOMISTA do Ipea diz que o RPPS é um sistema "cheio de caixas-pretas", e quanto maior o benefício, "maior a caixa-preta". Especialista em distribuição de renda, Soares lembra que, nas duas últimas décadas, diminuiu a disparidade do rendimento do trabalho, o que, se não houvesse outros fatores que atuassem em sentido contrário, atenuaria de maneira mais acentuada o quadro da concentração da renda no País. Mas os benefícios da Previdência superiores a um salário mínimo foram um fator de concentração. Ele lembra particularmente que, não fossem as pensões pagas pelo regime do funcionalismo público, as diferenças entre os mais ricos e os mais pobres do País seriam menores.

AO FALAR sobre os últimos resultados das contas da Previdência e da Seguridade Social, na semana passada, o ministro de Estado da Previdência e Seguridade Social , Carlos Gabas (PT-SP), disse que o atual governo, cujo mandato termina em dezembro, não tratará de nenhuma mudança pontual ou reforma nessa área. Mas ele promete deixar para o próximo governo um diagnóstico e algumas propostas, não de reforma, mas "de ajustes pontuais". Um deles seria a separação das contas da Previdência urbana e rural, que, segundo informa, já pediu ao Ministério da Fazenda (MF): "Se estivermos no governo, vamos fazer e, se não estivermos, vamos cobrar".

AJUSTES pontuais o sistema previdenciário já experimentou e continua a experimentar. Mas eles não criam reais perspectivas de solução do déficit a médio e a longo prazos. Em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foi dado um bom passo nessa direção com a criação do chamado Fator Previdenciário - que leva em conta o tempo de contribuição, a idade ao requerer o benefício e a expectativa de vida do trabalhador. Aguerridamente combatido pela oposição (o Partido dos Trabalhadores à frente), por entidades sindicais e de aposentados, o Fator Previdenciário começou, no entanto, a ser implantado com as dificuldades que sempre cercam temas sensíveis. Mas mostrou pelo menos coragem política do governo de então ao atacar racionalmente um problema sempre tratado em clima de exaltação emocional. E foi até aprofundado, em 2005, já no governo Luiz Inácio da Silva (2003-10), que o combatia.

O PROBLEMA é que, pensando sempre em termos eleitorais de curto prazo, o governo petista pôs-se a gerar para o sistema previdenciário despesas adicionais, ao corrigir o salário mínimo acima da inflação e ao estender aos já aposentados benefícios de reajustes que eles não desfrutavam, anulando, portanto, em certa medida, o que o sistema poderia ganhar de estabilidade com o funcionamento do Fator Previdenciário.

DESSE modo, o déficit do Regime Geral da Previdência Social, que em Setembro foi de R$ 9,2 bilhões, deverá chegar a R$ 46 bilhões até o final deste ano, caso seja a ele incorporado o custo da recente decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a elevação do teto de pagamentos, estimado em R$ 1,5 bilhão. E subiria muito mais se, no momento presente, as receitas não estivessem aumentando - graças a fatores exógenos, como a melhoria da formalização do emprego e da atividade econômica. "Não vamos deixar o Brasil ficar como a França" - vaticina o ministro. "É preciso planejamento. O Brasil tem pé no chão".

A NAÇÃO, sem dúvida, tem. Mas o governo do vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), neste assunto, o que teve mesmo foi a cabeça nas nuvens.