Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, julho 20, 2006

Nosso buraco é mais embaixo!

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Através de caminhos tortuosos, e por razões que nada têm a ver com a organização de um Estado moderno e eficiente, técnicos a serviço do governo do vosso presidente-candidato Luiz Inácio da Silva (2003-6) estão retomando a discussão sobre a reforma constitucional da Legislação da Previdência Seguridade e Social num momento delicado: na campanha eleitoral.

O grupo de trabalho criado há poucas semanas para estudar a unificação do serviço público dos três poderes é mais um passo que o governo do vosso presidente-candidato Luiz Inácio da Silva (PT-SP) dá na discussão da reorganização administrativa do Estado, tema que tem dominado as preocupações dos principais assessores do gabinete do Palácio do Planalto diante da impossibilidade de se manter o equilíbrio fiscal com o crescimento da máquina pública.

O que está por trás do discurso desastrado do ministro Extraordinário de Estado das Relações Institucionais da Presidência da República, Tarso Genro (PT-RS), pregando o fim do “direito adquirido” e contra os privilégios dos servidores públicos, é um conceito de Estado forte e bem capacitado, mas que é, na verdade, corporativista e assistencialista. Recuperar o que chamam de capacidade de atuar do Estado, que teria sido desestruturado durante a gestão peessedebista com as terceirizações e as desestatizações, é o que justificam os 40 mil cargos preenchidos nos últimos três anos e meio.

Aquele plano de reajuste salarial que foi divulgado outro dia, mais que triplicou os recursos orçamentários — de R$ 1,5 bilhão para R$ 5,1 bilhão — com objetivo de dar, até o fim deste ano, aumento generalizado aos servidores públicos, federais para que todos venham a ter um reajuste no mínimo correspondente à inflação dos quatro anos de governo.

Na contramão do governo do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que deu aumentos diferenciados com foco nas chamadas carreiras de Estado, o governo do vosso presidente-candidato Luiz Inácio da Silva visa a aumentos especialmente nos setores médios das carreiras públicas, atendendo às pressões sindicais.

Por isso, apesar dos números retumbantes do superávit primário de Abril último, no acumulado no ano, ou nos últimos doze meses, o resultado das contas públicas piorou.

Piorou o déficit da Previdência, e vai piorar mais ainda quando sair o resultado apurado em Maio último, quando os efeitos do aumento real do salário-mínimo se fizerem sentir na nossa economia. Os números ainda são vistosos, mas, de acordo com análise dos especialistas, apontam uma tendência de queda inexorável. No primeiro quadrimestre de 2006, considerando todo o setor público, o superávit primário foi de 6,36% contra 7,45% do Produto Interno Bruto (PIB) em igual quadrimestre de 2005 — ou seja, piorou em 1% do PIB; o total gasto com juros também subiu de 8,7% para 9% do PIB e, com isso, o déficit nominal aumentou de 1,2% para 2,6% do PIB.

A deterioração está concentrada no governo federal: entre o primeiro quadrimestre de 2005 e de 2006, o seu superávit primário caiu de 5,4% para 4,5% do PIB; o gasto com juros subiu de 6,2% para 7,8% do PIB, e o déficit nominal explodiu de 0,8% para 3,4% do PIB, ou seja, o tamanho da deterioração é de 2,6% do PIB. No primeiro quadrimestre, a receita aumentou 9,9%, mas o gasto público federal cresceu 15,5%, puxado por aumentos salariais, custeio e benefícios.

Num País com uma expansão demográfica abaixo de 1,5% ao ano, a concessão de aposentadorias aumentou em 3,6%, as pensões por morte em 2,7% e a renda para idosos pobres e deficientes (Loas) em 10,5%.

A saída escolhida pelo governo é atacar os privilégios garantidos pelos “direitos adquiridos” no serviço público, que se refletiriam especialmente nas aposentadorias e nos salários. O objetivo do governo é proteger a grande maioria de funcionários e ter o apoio corporativo para combater os altos salários e aposentadorias milionárias.

Uma das idéias, que já foi discutida, é aumentar o salário do presidente da República e transformá-lo num limite real para todos os salários dos servidores públicos. Para dar o exemplo, o presidente abriria mão desse aumento.

A diferença de visão sobre a organização do Estado está flagrante na análise do ex-prefeito e candidato ao governo do Estado de São Paulo, o economista José Serra (PSDB-SP), para quem “o governo do presidente Luiz Inácio da Silva prepara uma poderosa bomba de efeito retardado para a economia brasileira, cuja explosão tem data marcada: depois das Eleições, em Novembro”. Serra identifica três “irresponsabilidades combinadas”: hipervalorização cambial, agravamento da crise no setor de agropecuária e aumento dos gastos correntes do governo federal.

Segundo Serra, “as piores chances do Brasil sustentam as melhores chances de Luiz Inácio da Silva ser reeleito. Ou o PT dá certo ou o Brasil se acerta”. Serra chama de “modelo de populismo fiscal” o rápido crescimento dos gastos correntes do governo federal, lembrando que as despesas indexadas com salários e outras remunerações “chegam para nunca mais sair”.

Embora seja consenso entre os economistas que se o sistema previdenciário não for reformulado e reformado as contas públicas de longo prazo não fecham, o economista Luiz Guilherme Schymura, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembra que, mesmo quando se excluem as contas financeiras e previdenciárias, o País ainda tem 21% do PIB para custear sua máquina administrativa, investimentos e política social, o mesmo que têm Chile e Argentina, países com indicadores socioeconômicos melhores que os nossos. Para ele, temos que melhorar a qualidade da gestão pública. Ele cita um trabalho dos economistas Vito Tanzi, do Fundo Monetário Internacional (FMI), e Ludger Schuknecht, do Banco Central Europeu (BCEU), de 2000, que, analisando um amplo grupo de países desenvolvidos, constatou que os países de menor setor público tiveram média de desempenho econômico melhor, com indicadores sociais semelhantes aos obtidos por governos com setor público avantajado.

Justificando a visão do petismo, o estudo mostra que a única exceção é a distribuição de renda, que melhora nos países com governos grandes. Mas, segundo o estudo, a diferença é menor do que o previsível quando se considera o volume de gastos em transferências com o objetivo deliberado de reduzir a desigualdade.

O nó da previdência brasileira é a aposentadoria no serviço público. Toda vez que se tenta reformá-la, para torná-la mais justa, a corporação se mexe de tal forma que as intenções iniciais nunca se realizam. Fazer uma retrospectiva é pedagógico.

Em 1998, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) uma emenda à Constituição estabeleceu idade mínima para o serviço público (60 anos, para homens, e 55, para mulheres). No momento da promulgação da emenda, quem, aos 53 anos de idade, no caso de homens, ou 48, no caso de mulheres, já tivesse contribuído por 35 anos, pôde se aposentar com o salário integral. Os que ainda não tinham alcançado aqueles requisitos mantiveram o direito de se aposentar mais cedo, tendo apenas que trabalhar mais 20% sobre o tempo que, no momento da promulgação, ainda faltava para que pudessem requerer o benefício. Por exemplo, se, em dezembro de 1998, o cidadão estivesse com 50 anos de idade, ele teria de trabalhar mais três anos, sete meses e seis dias, e não apenas mais três anos. Procedimento semelhante foi adotado para as aposentadorias proporcionais: os servidores que em 1998 já tinham 30 anos de contribuição (homens) e 25 (mulheres) puderam se valer desse benefício. Aos demais, foi resguardado esse direito, desde que cumprissem um pedágio de 40%. A emenda, portanto, ainda permitia aposentadorias muito precoces.

Em 2003, o governo do vosso presidente-candidato Luiz Inácio da Silva enviou então um novo projeto de emenda constitucional, que tentava postergar a idade em que os servidores se aposentam, dilatando, na prática, a idade mínima. Estabeleceu que o servidor continuaria podendo se aposentar a partir dos 53 anos (48, no caso de mulheres), depois das carências e pedágios estabelecidos em 1998, mas perderia 5% do valor do salário por ano antecipado. Assim, se alguém se aposentasse aos 53 anos, perderia 35% do salário; se a aposentadoria se desse aos 59 anos, ele ainda teria um desconto de 5%. Valor integral, somente aos 60 anos. Mesmo assim, trata-se de uma vantagem enorme: o funcionário, não importando quanto tempo tenha servido à nação, quando se aposenta no tempo certo, tem o direito de receber o mesmo valor do último salário na ativa. Há casos em que o cidadão fez concurso público faltando poucos anos para se aposentar, sem que isso tenha qualquer efeito sobre o valor da aposentadoria: vale o último salário.

Os novos servidores públicos perderam esse direito. Eles passarão a se aposentar com base em todos os salários recebidos ao longo da vida, desprezando-se apenas os 20% menores. É uma mudança importante, mas a balança ainda pende a favor do servidor público. No Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), um cidadão que contribuiu sempre na maior faixa terá também a aposentadoria calculada tomando como base todos os salários a partir de 1994, desprezando-se os 20% menores. Mas o valor, porém, jamais poderá ultrapassar o teto máximo do INSS, hoje em R$ 2.801,456. As aposentadorias dos novos servidores públicos não precisam se limitar a esse teto.

Precisariam, não fosse a inação deste governo. A emenda aprovada em 2003 previu, como possibilidade, a imposição do mesmo teto do INSS para os novos servidores e a criação de um fundo de previdência para complementar a aposentadoria deles. A coisa funcionaria assim: do servidor seria descontado não mais com base na totalidade do salário, como é hoje, mas com base no teto do INSS, que seria o valor máximo que ele receberia ao se aposentar. Como opção, o servidor poderia contribuir também para o fundo de previdência, de tal modo que o seu benefício ao se aposentar seja maior. Governo e servidores contribuiriam para esse fundo. Esse ponto da emenda, porém, não foi regulamentado e, na ausência dessa regulamentação, fica valendo o que eu descrevi acima: o servidor não recebe uma aposentadoria com base no último salário, leva em conta, como no INSS, a média dos 80% maiores salários, mas não tem de respeitar o teto do INSS. Se o governo quiser, pode deixar tudo assim indefinidamente.

Esse não foi o único recuo. O plenário do Congresso Nacional achou a emenda de 2003 draconiana demais, e o governo fez um acordo: pediu que a emenda fosse aprovada tal como estava, para que outros pontos da lei não se perdessem, mas se dispôs a enviar ao Congresso uma nova Proposta de Emenda Constitucional (PEC), a chamada PEC paralela. Este projeto foi aprovado em 2005 e instituiu a seguinte fórmula: para os que já estavam no serviço público em 1998, o tempo de contribuição (mínimo de 35 anos para homens) e a idade, somados devem dar 95, para que o servidor possa se aposentar com o salário integral. Para mulher, o tempo mínimo de contribuição é de 30 anos; portanto, a soma com a idade deve ser de 85 anos. Um servidor que tenha começado a trabalhar aos 16 anos, contribuindo sempre para a previdência, aos 51 anos terá 35 anos de contribuição, mas ainda não poderá se aposentar, pois a soma de 51 e 35 dá 86 anos. Para que a soma dê 95, ele terá de trabalhar mais 4,5 anos: aos 55,5 anos, a soma da idade com o tempo de contribuição (39,5) dará 95, e ele poderá se aposentar sem descontos. Em qualquer outra hipótese, ele continuará perdendo 5% por ano antecipado (se ele se aposentar aos 54 anos, por exemplo, perderá 30% do salário). As regras para aposentadoria proporcional não foram alteradas. Houve, portanto, um retrocesso. E a situação continua péssima.

O déficit do setor público é de R$ 39,2 bilhões. A proporção é de um funcionário na ativa para cada aposentado. Entre 2002 e 2005, as despesas com os inativos e pensionistas da União, como proporção do PIB, caíram de 2,3% para 2,1%. Mas, como o PIB cresceu, isso não quer dizer que as despesas diminuíram. Segundo cálculos do economista Raul Veloso, no período, descontada a inflação, os gastos subiram 8,1%. E continuam crescendo.

O resultado é aquele: 60% de tudo o que o governo gasta vai para a Previdência e Seguridade (pública e privada), deixando muito pouco para que o País possa investir em Segurança, Reforma Agrária, Agricultura, mas, fundamentalmente, em Educação e Infra-estrutura, os dois setores que promovem o desenvolvimento.

Problemas com previdência e seguridade social não são exclusividade nossa. A diferença é que lá fora o assunto é tratado de frente. No Reino Unido da Grã-Bretanha, o governo trabalhista liderado pelo Primeiro-MinistroTony Blair pretende subir a idade mínima para 68 anos. Na França, o tempo de contribuição aumentou de 36,5 anos para 40 anos.

Aqui, mesmo em época de eleição, os políticos silenciam. A Oposição (PSDB/PFL) fez o papel de defensora dos aposentados e obrigou o presidente Luiz Inácio da Silva a vetar aumento de 16,6% para os que ganham mais de um salário-mínimo. O presidente-candidato fez o papel de guardião do Orçamento e da moralidade com as contas públicas ao negar um aumento “politiqueiro”. E os aposentados fizeram papel de bobos.

A Oposição conseguiu votar o reajuste no Congresso Nacional, mas sabia desde o início que os 16,6% não seriam efetivamente pagos. Mais que isso, a Oposição esperava que o presidente vetasse o aumento porque, conforme as lideranças do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e do Partido da Frente Liberal (PFL) cansaram de dizer quando estavam no governo, as contas da previdência apresentam um desequilíbrio crescente.

De sua parte, o vosso presidente-candidato tem razão quando declara que não tem Orçamento para aquele reajuste. O déficit da previdência em 2006 alcançou R$ 15,8 bilhões até Maio, um crescimento de 22% sobre o mesmo período do ano passado — e isso com o aumento do salário mínimo (de 16,6%) tendo entrado nas contas apenas em Maio. Conceder os mesmos 16,6% para as aposentadorias de valor superior ao salário mínimo vigente aumentaria esse déficit em mais R$ 8 bilhões, aproximadamente.

Mas, com isso, o presidente-candidato também chamou para a roda dos bobos os aposentados que ganham mais de um salário mínimo. Ocorre que Luiz Inácio da Silva gastou mais que R$ 8 bilhões com os reajustes salariais para quase todas as categorias dos servidores públicos federais, algumas já aquinhoadas com vencimentos muitas vezes maiores que o salário mínimo. Só com o novo plano de cargos do Judiciário, serão cerca de R$ 5 bilhões — e isso beneficiando os funcionários que já recebem os maiores salários médios do serviço público. Com os servidores do Executivo, o gasto adicional neste ano chegará a, no mínimo, R$ 6 bilhões — e isso só com a última rodada de reajustes, alguns beneficiando categorias já bem remuneradas. Até Maio, a despesa do governo federal com pessoal subiu 13,1% em relação ao ano passado — e isso antes da entrada em vigor da última rodada de aumentos. Esses 13% a mais superam a inflação e o ritmo de crescimento econômico.

Assim, não é que não tem dinheiro no Orçamento. Não tem para os aposentados que ganham mais de um salário-mínimo. É preciso esclarecer que esses aposentados, pelos planos do governo, receberão um reajuste de 5%, portanto, com um pequeno ganho sobre a inflação. Poderiam ter recebido mais, se o presidente economizasse nos reajustes salariais para o funcionalismo ou mesmo para o salário mínimo.

Pode-se argumentar, tecnicamente, que há receita no Tesouro Nacional (TN), mas não receita previdenciária, esta formada pelas contribuições pagas por empregados e empregadores. Mas ocorre que o atual déficit das contas da Previdência e Seguridade Social já vem sendo coberto com as demais receitas do TN. Uns bilhões a mais ou a menos não fariam diferença.

Assim, o governo tomou duas decisões políticas: um forte aumento real para o salário-mínimo, bem acima da inflação, beneficiando os 16 milhões de aposentados que recebem pelo piso; e aumentos salariais reais para praticamente todo o funcionalismo, incluindo ativos e inativos. Para os aposentados do INSS que ganham mais de um salário mínimo, sobrou o rigor do Orçamento.

O vosso presidente-candidato tem dito que os parlamentares poderiam ter alterado o Orçamento se de fato quisessem aumentar o reajuste dos aposentados com vencimentos superiores ao mínimo. É verdade. Mas ele, presidente, poderia ter feito a mesma coisa, mesmo depois de aprovado o Orçamento.
Tudo considerado, trata-se de uma disputa eleitoreira entre Governo e Oposição, cujo resultado concreto já se sabe. Os 16% não serão estendidos a todos os aposentados. Na verdade, o presidente-candidato só toparia os 16% se tivesse certeza que ia perder a eleição, porque assim passaria a bomba para o próximo governo. Mas nesse caso a Oposição não toparia. Enquanto isso, atendendo a uma ou outra clientela, sobem os gastos públicos e cresce o déficit previdenciário. E nem Governo nem Oposição apresentaram o que realmente importa para o futuro do País: se vão ou não propor uma nova reforma da Previdência e, em caso positivo, como será essa proposta.