Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, junho 11, 2011

Toada maior

JÁ ERAM favas contadas que a Oposição investisse contra a decisão do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, de mandar para o arquivo os seus pedidos de abertura de investigação sobre possíveis ilícitos cometidos pelo, então, ministro da Casa Civil Presidência da República, Antonio Palocci Filho (PT-SP), entre 2006 e 2010, quando acumulava o exercício do mandato de deputado federal com a fantasticamente bem remunerada atividade de consultor de grandes grupos econômicos. Gurgel entendeu que as representações a ele encaminhadas não continham "indício idôneo" de que a renda auferida à época por Palocci Filho "adveio da prática de delitos". A Oposição retrucou que Gurgel se comportou como agente do governo e não como titular de um órgão de Estado.

PORÉM o que chama a atenção - e lança uma sombra sobre o parecer do procurador-geral da República - foi a reação dos seus pares do Ministério Público Federal (MPF) e de promotores da Justiça ouvidos pela nossa reportagem. Uma das críticas mais contundentes partiu de um procurador da República no Distrito Federal (DF), aludindo ao fato sabido de que, em certos círculos, há cidadãos "mais iguais" do que outros. "Qualquer João da Silva", comparou, "já teria seus registros devassados pela Receita Federal do Brasil (RFB), Banco Central do Brasil (BC) e pelo Departamento de Polícia Federal (DPF), a requerimento do procurador-geral da República". Outro colega lembrou que o mesmo Gurgel recorreu da decisão judicial que invalidou a “Operação Castelo de Areia”, do DPF, sobre suposto esquema de evasão de divisas envolvendo executivos de uma grande empreiteira nacional e diversos políticos. A Justiça rejeitou a investigação por se basear em denúncia anônima e incentivo à delação premiada. Gurgel, porém, considerou legítimas as acusações dessas fontes. Dois pesos e duas medidas, portanto.

DE todo modo, a essência do problema Palocci Filho não reside na esfera jurídica e, sim, no terreno da política. Seria óbvio até para um habitante de Marte recém-chegado à Terra, que as revelações sobre o seu fulminante enriquecimento, a sua prolongada recusa a se explicar e, por fim, suas inconvincentes entrevistas - nas quais não quis contar quanto ganhou nem de quem e, muito menos, por que exatamente - fortaleceram as suspeitas de que as suas consultorias possam ter sido um biombo para tráfico de influência. E essas suspeitas, que em momentos diferentes levaram a Oposição a representar contra ele na Procuradoria-Geral da República (PGR), a tentar convocá-lo a depor no Congresso Nacional e a buscar a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal, acabaram reduzindo a pó a autoridade política inerente à sua condição de espécie de "primeiro-ministro" deste governo Dilma Rousseff (2011-14).

NO Congresso Nacional, na sociedade, na mídia - nela incluídos comentaristas de posições consideradas até mesmo antagônicas em relação a outros assuntos - e em setores do próprio governo, Palocci Filho perdeu por completo a confiança sem a qual não poderia ser o gerente da administração federal, o principal conselheiro de sua chefe e seu interlocutor por excelência junto à base parlamentar governista. Quando uma figura notória como o líder da Força Sindical, deputado federal Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), de quem não se dirá que ignora a direção do vento, engrossou o coro dos que cobraram da presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS), o imediato afastamento de Palocci Filho, saltou aos olhos que apenas uns poucos fios ainda o sustêm - e que, para dona Rousseff, cada dia que se passava com ele a seu lado era mais um dia de perdas. Para usar um termo do agrado de Palocci Filho, a racionalidade, quanto mais não fosse, tornou a sua permanência uma servidão que a presidente Rousseff deveria - e poderia - dispensar.

AS cartas estavam na mesa. Ou dona Rousseff protegia Palocci Filho e se condenaria a arrastar um governo fracionado, como refém dos condôminos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e das facções que se engalfinham no Partido dos Trabalhadores (PT), ou criava coragem para reconstruir a sua gestão à frente da Presidência da República e finalmente assumir as suas intransferíveis responsabilidades políticas. Já não se tratava nem da questão ética. A saída de Palocci foi a oportunidade para ela reconfigurar a arquitetura dos poderes que recebeu em 01 de Janeiro último. À sombra dele, a articulação do governo com a sua própria gente do outro lado da Praça dos Três Poderes já estava em crise fazia tempo. Não fosse o escândalo, caminharia para um rematado desastre. Pela estabilidade do governo Rousseff e o interesse nacional, era o momento de dirigir à pessoa certa a exortação do caudilhista presidente da República Bolivariana da Venezuela, o coronel-paraquedista e falastrão Hugo Chávez ao ministro de Estado alquebrado. Fuerza, presidente!

AGORA, se a crise que culminou com a saída de Palocci Filho deste governo Rousseff fosse transformada em peça de teatro, a fala final poderia ser o seu resignado comentário a um grupo de parlamentares, na última Segunda-feira, 06, véspera da queda, sobre o seu fracasso em desvendar "a esfinge" Dilma Wana Rousseff. Seria um fecho apropriado para um enredo atual sobre a cegueira com que os deuses puniam, nas tragédias gregas, os mortais possuídos pela soberba. Ofuscado pela convicção de que suportaria o impacto do seu nebuloso enriquecimento e ainda sairia fortalecido do escândalo, Palocci Filho não viu que a presidente Rousseff já havia selado o seu destino.

SUA paixão pelo poder o impediu de aproveitar o parecer do procurador-geral da República, que lhe foi favorável, mas não poderia recompor a sua autoridade política desfeita, para sair de cabeça erguida. Em vez disso, soltou uma nota augurando que a decisão carreasse o embate político para os trilhos da razão, verdade e justiça. Quis assim exortar a chefe, os companheiros de governo e de partido, a base parlamentar e até a Oposição a virar a página do caso e deixá-lo firme no seu lugar - uma impossibilidade manifesta. A ficha só começou a deslizar quando ele se deu conta de que a presidente Rousseff continuava muda e queda.

AINDA assim, em desespero de causa e mudando radicalmente de curso, se ofereceu para se explicar no Congresso Nacional e deixar de usurpar as funções do colega da Secretaria Extraordinária das Relações Institucionais da Presidência da República, em tese responsável pela interlocução com os políticos sobre os seus temas preferidos: cargos e verbas. A essa altura, Palocci Filho ignorava, ou fingia para si mesmo ignorar, que a presidente Rousseff não só já avisara ao ex-presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), o patrono da ida de Palocci para a Casa Civil da Presidência da República, de que decidira tirá-lo, como chamara para a vaga a senadora da República em primeiro mandato, Gleisi Hoffman (PT-PR). Não bastasse ter exposto uma desprevenida presidente da República a uma tormenta política, depois não a ajudou a se abrigar.

O QUE Palocci Filho sem querer proporcionou a dona Rousseff foi um curso intensivo sobre as vicissitudes do poder, os cálculos políticos egoístas, conflitos de egos, divisões desarmônicas de trabalho e estruturas agigantadas que relutam a se deixar manejar. E tudo isso fazendo parede e meia com as demandas de um parceiro, o PMDB, que rejeita o papel de segundo violino e reivindica, isso sim, compartilhar a regência da orquestra. Rousseff há de ter aprendido que a política não vai embora só porque se lhe dá as costas; que superministros, ainda mais por escolha alheia, tendem a ter, como se dizia de Palocci Filho, "o rei na barriga"; e que a tutela do antecessor, ainda mais quando ostensiva, é uma via expressa para o apequenamento.

APESAR da convalescença de duração incerta que aguarda a presidente da República, a nomeação, de lavra própria, da senadora Hoffman indica que ela tem condições de se tornar senhora da situação, com um governo à sua imagem e semelhança, combinando os recursos de poder de que dispõe com um novo padrão de convivência com os aliados no Congresso Nacional. Escalada para ser "a Dilma da Dilma", como ouviu ao ser convidada, a advogada Gleisi Hoffman, casada com o ministro de Estado das Comunicações, Paulo Bernardo (PT-PR), tem uma bagagem técnica respeitável. Foi secretária de Estado de Administração do Mato Grosso do Sul (MS), diretora financeira d a Companhia Hidrelétrica Itaipu Binacional S/A e se especializou em Orçamento ao chefiar o gabinete de deputado federal do marido. Presidiu o PT no Estado do Paraná e se candidatou a prefeita municipal de Curitiba (PR).

HOFFMAN é uma ferrenha defensora da gestão Rousseff. Foi a primeira petista a dizer (numa reunião da bancada com Luiz Inácio da Silva) que o PT não devia quebrar lanças por Palocci Filho, porque os seus negócios só dizem respeito a ele. Franqueza do gênero poderá lhe fazer mal, se a sua agenda incluir negociações sistemáticas com a base parlamentar governista. Melhor que não inclua. Já é tempo de a Casa Civil da Presidência da República voltar a ser, essencialmente, um Ministério do Governo, voltado "para dentro", como em países civilizados, e até mesmo aqui no Brasil como no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). O Poder Executivo cresceu tanto que o acúmulo de funções naquele órgão se tornou inviável.

JÁ É tempo também de entregar a articulação política, outrora exercida pelos ministros de Estado da Justiça, a uma figura equivalente, um político de longa trajetória, familiarizado com o dialeto dos colegas e com o idioma do Palácio do Planalto; Mas ao deslocar a ministra de Estado da Pesca e ex-senadora Ideli Salvati (PT-SC) para o encargo, o tiro poderá sair pela culatra!