Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, dezembro 12, 2009

Precedente temerário

CONFORME a decisão que vier a se estabelecer quanto ao pedido de habeas corpus impetrado pelos advogados dos fundadores da Igreja Renascer em Cristo, os "bispos" Estevam Hernandes Filho e Sônia Haddad Hernandes, acusados de lavar dinheiro, por meio de empresas vinculadas à entidade, e desviar doações para proveito próprio, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) poderá abrir um precedente que reduzirá drasticamente o alcance da Lei Contra a Lavagem de Dinheiro e Evasão Fiscal (Lei 9.613/98).

UMA ADVERTÊNCIA nesse sentido vem sendo feita pelos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado de São Paulo, desde que os ministros José Antonio Toffoli e Marco Aurélio Mello apresentaram seus votos manifestando-se a favor do trancamento da ação penal movida contra o casal Hernandes. O Gaeco é uma força-tarefa especializada na investigação de crimes contra a administração pública e contra o sistema financeiro e outros delitos de natureza econômica.

O JULGAMENTO do habeas corpus foi suspenso por um pedido de vista da ministra Carmen Lúcia e os promotores paulistas temem que, quando o caso for retomado, a posição de Toffoli e Marco Aurélio saia vencedora. O ponto central da discussão são os conceitos jurídicos de "crime antecedente" e de "organização criminosa", com base nos quais as severas sanções da Lei 9.613/98 são aplicadas aos integrantes do crime organizado. Em outras palavras, para que sejam condenados pela Justiça pela prática de lavagem, os denunciados precisam ter cometido previamente um ilícito, como, por exemplo, desvio de dinheiro público, evasão fiscal ou fraude.

USANDO como modelo a legislação adotada pelos países da OCDE, a Lei de Lavagem considera crime antecedente qualquer delito praticado por uma organização criminosa. Mas, segundo Marco Aurélio, por não ter sido tipificado, o delito de formação de "organização criminosa" não poderia ser aceito como antecedente do crime de ocultação de bens ilícitos. Na medida em que a Lei 6.913 não definiu o que é organização criminosa, faltaria ao Ministério Público base legal para fundamentar suas acusações. Ou seja, se não há o tipo penal do que se supõe que teria provocado o surgimento do que posteriormente seria lavado, não há como se afirmar que réus acusados com base na Lei 9.613/98 praticaram o delito de lavagem. Assim, não poderiam ser condenados.

SEGUNDO os promotores paulistas, o entendimento dos dois ministros peca pelo excesso de formalismo jurídico, podendo levar ao trancamento de 90% das ações por lavagem de dinheiro. "Seria um retrocesso. Vai desmoronar tudo o que o Brasil conquistou no combate ao crime de lavagem. São centenas de condenações sob risco. Tudo o que o Ministério Público construiu contra organizações criminosas por lavagem é amparado na Lei 9.613/98. Ela não contém palavras inúteis e não comporta interpretações", diz José Reinaldo Guimarães Carneiro, secretário executivo do Gaeco, depois de lembrar que, quando faz uma denúncia de lavagem à Justiça, o Ministério Público parte da premissa de que esse ilícito é praticado por organizações em cujo âmbito as funções criminosas de cada integrante são definidas por critérios de especialização, numa estrutura funcional bem ordenada. Os promotores também afirmam que se baseiam no conceito de organização criminosa definido pela Convenção de Palermo, que foi ratificada pelo Brasil em 2004.

OS PROMOTRES paulistas estão certos, evidentemente, quando advertem a Primeira Turma do STF para as consequências do precedente que poderá ser aberto caso prevaleça o entendimento dos ministros Toffoli e Marco Aurélio. Mas o fato é que uma convenção internacional não cria tipos penais e a legislação penal brasileira até hoje não definiu "crime organizado" ou "organização criminosa", limitando-se a tratar do delito de formação de bando e quadrilha. Há três anos, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou um projeto que tipifica o conceito de organização criminosa, fechando as lacunas da Lei 9.613/98. Até hoje, porém, ele não foi votado em caráter definitivo. Os promotores deveriam se queixar ao Congresso Nacional.