Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, março 02, 2011

Com os dias contados!

ESSA insurreição popular contra o ditador carniceiro e terrorista líbio Muamar Kadafi, pela qual passa a Líbia, completou duas semanas sob "uma obscena quantidade de disparos", como um morador da capital, Trípoli, descreveu a matança indiscriminada de seus concidadãos. A chacina foi levada a cabo, do ar e em terra, pelas forças do regime e por mercenários arregimentados no Norte da Africa. A repressão, que parecia ter chegado ao auge na início desta semana, deixou milhares de mortos e feridos - os números são imprecisos nesse país praticamente segregado, onde os jornalistas estão proibidos de entrar e as comunicações são precárias.

NO entanto, duas coisas são dadas como certas pela quase totalidade dos observadores estrangeiros: os dias de Kadafi estão contados e ele resistirá até o amargo fim, nem que para isso tenha de submeter a Líbia a um banho de sangue, o que os depostos autocratas da Tunísia e do Egito provavelmente não fariam, mesmo que pudessem. A principal diferença, à parte todas aquelas entre os três países, é que Zine El Abidine Ben Ali (ditador deposto na Tunísia) e Hosni Mubarak (ditador deposto no Egyto) eram criminosos políticos e cleptocratas - mas não "cachorros loucos", como o então presidente da República dos Estados Unidos da América (EUA), Ronald Reagan, chamou Kadafi, em 1986. Líder do golpe que acabou com a monarquia na Líbia, 17 anos antes, ele entrou em um surto psicótico do qual não se livrou até hoje, passadas quatro décadas no poder.

VESTINDO a fantasia de suplantar o egípcio Gamal Abdel Nasser na pretendida condição de líder do mundo árabe, o coronel líbio inventou doutrinas revolucionárias, imitou o chinês Mao Tsé-tung escrevendo um Livro Verde sobre o "socialismo islâmico", implantou uma ditadura não menos feroz que a do finado Saddam Hussein no Iraque e se tornou o primeiro chefe de Estado a patrocinar ostensivamente o terrorismo no mundo. Depois que as sanções internacionais tiraram o fôlego da economia líbia, movida pela extração do petróleo, pagou fortunas em indenizações, fez as pazes com o Ocidente, abriu mão de seus projetos nucleares e reatou as relações diplomáticas com os EUA, que o promoveram a aliado na guerra ao terror.

DEPOIS, foi visitado pelo então primeiro-ministro do Reino Unido da Grã-Bretanha, Tony Blair, e pela então secretária de Estado Norte-americano, Condoleezza Rice. Em 2009, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), Kadafi trocou um aperto de mãos com um sorridente presidente da República dos EUA, Barack Houssein Obama. Já então empresas norte-americanas haviam assinado contratos milionários com o governo da Líbia para dotar as suas Forças Armadas de sofisticados sistemas de comunicação. Em 2010, o Reino Unido da Grã-Bretanha vendeu ao governo líbio mais de £ 200 milhões em equipamentos bélicos. Mais de uma vez Kadafi foi acolhido em Roma como amigo íntimo pelo notório premiê italiano Silvio Berlusconi. A ENI, a estatal italiana do petróleo, assim como a companhia inglesa British Petroleum (BP) haviam se instalado na Líbia.

PORÉM, ali, só mudou a fisionomia do tirano, que deixou crescer o bigode e tingiu os cabelos (mantendo o uniforme de opereta, cravejado de medalhas). A selvageria do regime continuou idêntica. Isso não impediu que assomasse o pior dos mundos possíveis para qualquer déspota. É quando as suas vítimas perdem o medo e tomam as ruas. As manifestações na Líbia - cuja terceira cidade, Benghazi, passou para o controle dos revoltosos - só se intensificaram a cada ciclo de concentrações, tiros, mortes e sepultamentos. Ontem, uma testemunha disse ter visto pessoas tirando as camisas e expondo o peito às balas dos milicianos. O ciclo foi reforçado pelas ameaças do filho de Kadafi, Saif al Islam, de desencadear uma guerra civil, numa desalinhavada fala pela TV, à noite.

NA última Segunda-feira, 28, o pai, usualmente verborrágico, novamente se deixou filmar durante 20 segundos sob um guarda-chuva. Ele apenas queria desmentir os rumores de que tinha viajado para a Venezuela do seu aprendiz de histrião coronel paraquedista Hugo Chávez e lamentar que a chuva o impedia de estar com os seus partidários no centro de Trípoli. Ontem, fez um interminável e desconexo discurso na TV, novamente atribuindo a "agentes estrangeiros" a revolta contra sua ditadura. Partidários é o que ele tem cada vez menos. O ministro da Justiça e diversos diplomatas, incluindo os da missão líbia na ONU, renunciaram. Mas, salvo uma reviravolta a esta altura inimaginável, Kadafi lutará até o último de seus aliados.