Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, agosto 10, 2006

A quadrilha e o lombrosianismo

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Cesare Lombroso atirou no que viu e acertou no que não viu. Literalmente. O psicopatologista veronês acreditava que a propensão ao crime podia ser enxergada nos traços fisionômicos e nas características físicas dos criminosos. Logo, a sua análise possibilitaria tanto a prevenção do mal quanto, uma vez praticado, o seu tratamento médico.

Lombroso aproveitou-se da frenologia, do darwinismo e da eugenia para identificar “estigmas atávicos”, que, em última instância, remeteriam ao selvagem homem primitivo: queixos grandes, narizes aquilinos, orelhas de abano, zigomas salientes, braços compridos etc. Assim, o crime seria uma determinação biológica, não um problema moral ou social.

O lombrosianismo continuou muito influente na criminologia bem depois da morte de seu criador, aos 74 anos, em 1909. Todavia, com o tempo, sua teoria caiu em desgraça, em parte por causa do racismo a ela inerente. Foi substituída pela nova crença científica de que o crime tem tão-somente motivações sociais. É esta última idéia que subsiste, por exemplo, na ilusão de que até os piores criminosos podem ser ressocializados.

Num epílogo de humor negro ao lombrosianismo, a cabeça do próprio Cesare Lombroso está preservada em formol no Museu de Criminologia de Turim que leva o seu nome e está fechado ao público. Os pesquisadores credenciados costumam brincar que os traços fisionômicos do cientista italiano denunciam claras tendências violentas.

Embora Lombroso tenha se tornado uma piada, penso seriamente nele nos últimos dias, conforme os meios de comunicação exibem e reexibem, com louvável caráter didático num ano eleitoral, as fotos 3 x 4 dos políticos envolvidos na Máfia das Sanguessugas. No esquema sob investigação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em andamento no Congresso Nacional e da Justiça Federal, os proprietários da empresa Planam os subornava em troca da apresentação de emendas para compra de ambulâncias superfaturadas.

Nunca se trata de “mero” crime de corrupção passiva. Na Saúde, então, mais do que nas outras áreas afetadas por escândalos de malversação do dinheiro público, o caso, é sempre de homicídio doloso. Pagar por ambulâncias caras significa ter dinheiro para comprar menos ambulâncias. Menos ambulâncias fazem menos atendimentos. Menos atendimentos decretam a morte de um número maior de cidadãos.

Algumas características agrupam quase uma centena de parlamentares investigados e já conhecidos (além deles, há outros 26 ex-parlamentares sob suspeita). Cinqüenta e cinco pertencem à “base aliada” do governo do vosso presidente-candidato da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP), isto é, pertencem ao Partido Liberal (PL), ao Partido Progressista (PP) e ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), os mesmos partidos da clientela preferencial do esquema do mensalão, empreendido pelo popular delubiovalerioduto.

A maior representação estadual é do Rio de Janeiro. Os 16 citados correspondem a um terço da bancada fluminense na Câmara dos Deputados, o que diz muito do nível dos políticos que os cidadãos do Rio de Janeiro tem escolhido para representa-los no Congresso Nacional.

Não há, claro, nenhum estigma lombrosiano que una tantas caras suspeitas, que constituem cerca de 20% do parlamento nacional, porcentagem assustadora se levarmos em conta que não há coincidência absoluta entre as sanguessugas e os mensaleiros. Há proxenetas de todos os cleros, prognatas e desqueixados, barbudos e carecas, brancos e negros, homens e mulheres, — nestes dois últimos casos, respeitada a (des)proporcionalidade de sua representação política.

A despeito disso, contemplo suas fotos, a maioria coletada na própria propaganda, não flagrante de maus momentos, e consigo enxergar o crime nelas. Não é, porém, nenhum traço fisionômico ou físico. É algo invisível, mas assaz significativo. Daí eu ter escrito, de início, que Lombroso atirou no que viu e acertou no que não viu.

Ainda não há definição mais esclarecedora do que quero dizer do que uma pergunta formulada trinta e oito anos atrás. Na eleição norte-americana de 1968, a campanha do democrata Hubert Humphrey atacou o republicano Richard Nixon com um slogan célebre: “Você compraria um carro usado deste homem?” O eleitorado comprou, pela margem de 0,7%. Nixon, eleito presidente da República norte-americana, contudo, teve de governar sem maioria nem na Câmara dos Deputados nem no Senado Federal. E, em 1972, estourou o escândalo da invasão da sede do Partido Democrata no complexo de edifícios Watergate, em Washington (DC). Envolvido, Nixon, teve que renunciar dois anos depois.

Diante das fotos das sanguessugas, abrasileiro a pergunta: “Eu compraria uma ambulância nova desta gente?” Mesmo diante da probabilidade de que alguns — alguns, não muitos — dos parlamentares investigados sejam inocentes, na dúvida a resposta é invariavelmente: “Não, não compraria”. Como ter confiança o bastante para adquirir um veículo é algo mais concreto do que mandar um indivíduo desconhecido cuidar dos interesses da nação, a pergunta deveria ser inserida no início de cada sessão de votação nas urnas eletrônicas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Quando o presidente-candidato Luiz Inácio da Silva pede “não pensem que o erro de cada um é individual ou partidário”, vosso presidente da República (2003-6) não está apenas justificando a corrupção: está dizendo que até os piores criminosos podem ser ressocializados. É ilusão acreditar que, num pretenso segundo mandato, o presidente-candidato vai afinal reformar a política de que ora se beneficia. Aliás, o pedido foi feito num ato de campanha em Pernambuco, do qual participou o ex-ministro de Estado da Saúde e candidato ao governo daquele estado, Humberto Costa(PT-PE).

A publicação do ranking nacional das sanguessugas, no qual aparecem, em primeiros lugares, o Rio de Janeiro, com 16 deputados, e São Paulo, com 13, entre os parlamentares envolvidos oficialmente, serviu para desfazer a ilusão de que ao progresso econômico ou cultural corresponde necessariamente um avanço político. Em outras palavras, o tão esclarecido eixo Rio-Sampa é um fiasco na hora de escolher seus representantes no Congresso Nacional. Se já não bastasse a competição no terreno da violência urbana, eis que surge agora essa outra, para saber quem está mais enrolado com a máfia das ambulâncias.

Do Rio de Janeiro posso dizer que merece o primeiro lugar, e não apenas pelo que exporta para Brasília (DF). Nos últimos anos, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) foi farta em escândalos, com vários de seus integrantes metidos com tráfico de influência, denunciados pela Comissão Parlamentar Estadual de Inquérito (CPI) que apurou irregularidades na Loteria Esportiva do Rio de Janeiro (Loterj), adulteração de combustíveis, fraudes, suspeita de enriquecimento ilícito, etc. O ex-deputado (cassado) federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) chegou a dizer que o esquema de pagamento de propina na Alerj, supostamente comandado pelo ex-deputado Bispo Carlos Rodrigues (PL-RJ), que renunciou, teria servido de modelo para o mensalão do petismo na Câmara dos Deputados.

O que “consola” os cidadãos fluminenses é que são do Rio de Janeiro dois dos mais atuantes membros da CPI das Sanguessugas: o deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), presidente, e o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), sub-relator, os quais, ao lado do deputado Raul Jungmann (PPS), de Pernambuco, vêm trabalhando para cortar exemplarmente na própria carne, com coragem e sem complacência.

Nessa direção, outro sinal positivo foi a iniciativa do deputado carioca e ex-ministro de Estado das Comunicações Miro Teixeira (PDT-RJ), de buscar num artigo da Constituição a brecha para impedir que candidatos corruptos sejam eleitos ou reeleitos. Desapareceria a figura do “transitado em julgado”, ou seja, a condenação com provas irrefutáveis não ficaria na dependência do julgamento de todos os recursos e apelações possíveis.

Os interessados alegam sempre que não se pode condenar previamente. E absolver, pode? Para os representantes do cidadão deveria valer não o postulado jurídico de que todos são inocentes até prova em contrário, mas o consagrado princípio da “mulher de César”, adaptado aos tempos modernos: não basta ser honesto; é preciso também parecer e convencer, sem direito a ser suspeito.

Assim como, para pegar o gângster Al Capone, foi preciso que o Departamento de Receita Federal dos Estados Unidos da América (EUA) atuasse, os procuradores do Ministério Público paulista estão tentando impugnar as candidaturas do ex-prefeito paulistano Paulo Salim Maluf (PP-SP) e do ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha (PT-SP) através de pequenos artifícios. Contra Maluf, alegam que não declarou seus bens no exterior — o que não poderia fazer, já que, apesar das evidências, nega possuí-los. E contra o deputado mensaleiro petista João Paulo Cunha, envolvido no escândalo do delubiovalerioduto e absolvido pelo corporativismo da Câmara dos Deputados, alegam a falta de pagamento de multas. Os procuradores, não apenas os de São Paulo mas de todo o País, terão a partir desta semana um instrumento muito mais poderoso, se não para evitar candidaturas, pelo menos para evitar a posse de eleitos que, como Maluf e Cunha, estejam envolvidos com acusações de corrupção.

A decisão do procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, de encaminhar aos procuradores regionais eleitorais a petição do deputado carioca Miro Teixeira para que, com base na Constituição, comecem a preparar ações de impugnação de mandatos eletivos “contra quem comprovadamente tenha praticado abuso do poder econômico, corrupção ou fraude e que, por desventura, venha a ser eleito ou reeleito nas próximas eleições” é um passo inicial de um processo que pode mudar radicalmente a política brasileira. Foi Antônio Fernando de Souza quem denunciou ao Supremo Tribunal Federal (STF) por formação de quadrilha, entre outros crimes, “a organização criminosa” do mensalão articulada pela liderança nacional do petismo.

O fato de o procurador-geral ter encaminhado seu despacho a todos os procuradores nos estados significa que considerou a petição do deputado pedetista procedente, embora não tenha assumido formalmente a tese defendida por Miro Teixeira, e nem esse seria seu papel. Ele só tem iniciativa no caso de impugnação do presidente da República, porque a instância original é o TSE.

Acompanha a petição o seguinte despacho: “Encaminho cópia da petição do deputado Miro Teixeira para que tomem conhecimento e tomem providências que entenderem cabíveis”. Mas não é de hoje que o procurador-geral da República fala em decisões restritivas de tribunais regionais em face à Constituição. Na posse do ministro Marco Aurélio de Mello na presidência do TSE, ele falou dos “vícios do processo eleitoral brasileiro”.

Na sua petição, Miro Teixeira, alerta para o fato de que “a urgência das medidas de caráter preparatório, tais como a instauração de procedimentos administrativos e/ou a requisição de documentos ou diligências (art. 7 da Lei Complementar 75/93), é ditada pelas indagações da opinião pública, que está na condição de refém de artifícios legais que garantem a impunidade”. Sem essas providências preparatórias, o prazo de 15 dias para a propositura da ação não seria cumprido.

Miro afirma que tramitam, especialmente no STF, inquéritos com provas fartamente documentadas contra candidatos ao pleito deste ano, “mas não há possibilidade de conclusão e trânsito em julgado dos feitos até as próximas eleições”. A petição do deputado está baseada no parágrafo 10 do artigo XIV da Constituição Federal, que diz que “o mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de 15 dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude”.

Miro Teixeira lembra que a Constituição Federal foi usada pelo STF para combater o nepotismo, com base no princípio da moralidade. Na interpretação de Miro Teixeira, “a prova de corrupção impede o mandato, tendo ou não os crimes praticados ocorrido em período eleitoral. Qualquer restrição temporal à aplicação da ordem constitucional tornaria absolutamente inócua a norma, até porque dos crimes relativos às eleições já tratam os institutos próprios e infraconstitucionais”.

Não foi esse o entendimento de técnicos do TSE, que emitiram na semana passada uma nota em que sugerem que casos concretos venham a ser examinados quando se apresentarem. Ainda haverá o pronunciamento de um dos juízes do TSE, mas a decisão dos procuradores regionais corre paralelamente à decisão.

Miro lembra na petição que “há provas recolhidas pelo Departamento de Polícia Federal e pelo Ministério Público que indicam, nas ações descritas, ofensas sem precedentes aos princípios constitucionais da moralidade e legalidade administrativa, suficientes para impedir o exercício de qualquer função pública e, com maior razão, de mandatos eletivos”.

A questão que se coloca é: como uma pessoa não pode fazer um concurso público se tiver antecedentes de alguma espécie, mesmo sem trânsito em julgado, e pode se candidatar e assumir um mandato eletivo? Além da atuação do Ministério Público, uma outra ação poderá ser tomada. A Organização Não-Governamental (ONG), A Voz do Cidadão, está fazendo uma campanha para que o TSE passe a exigir dos partidos que apresentem uma declaração de bons antecedentes logo no registro das candidaturas. “A legislação de concurso público exige de qualquer cidadão, ou a lei das licitações exige das empresas, ou mesmo o Detran exigem prontuário de qualquer candidato a motorista diploma bem menos importante do que o de um mandato político”, comenta o publicitário Jorge Maranhão.

Mas essa é uma ação de médio prazo, assim como a mudança da lei complementar das inelegibilidades, que define que apenas os processos com “trânsito em julgado” podem impedir a candidatura ou a posse de alguém, ferindo o espírito da Constituição Federal, no entender de vários juristas. A ação do Ministério Público em cada estado, com a confiança que eles inspiram na Sociedade, seria a melhor solução, e a mais rápida. Com base na Constituição Federal de 1988, que marca a retomada da democracia no País.

Romper a barreira do corporativismo não é fácil, mas é a única saída. Para os desvios de conduta de um Congresso Nacional tão infeccionado como o atual, a reação tem que começar lá dentro. É fundamental que haja rejeição do próprio organismo, de sua parte sã.

Sem a formação urgente de uma espécie de frente ampla capaz de colocar as afinidades éticas acima das diferenças partidárias e ideológicas, continuará a repetição impune dos escândalos, e isso só aumentará na Sociedade a percepção, embora injusta, de que a banda podre contaminou toda a instituição.

Por essas e outras, e apesar de tudo, ainda identifico indivíduos e partidos que, à pergunta hipotética, suscitam a resposta: “Sim, eu compraria uma ambulância nova desta gente”.