Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Enamorada madame Peyroux

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Sei como o personagem Rafael brilhantemente interpretado pelo ator Du Moscovis se sentiu quando olhou para a Serena (personagem de Priscila Fantin) e achou que estava diante da reencarnação da sua falecida esposa em “Alma Gêmea” (TV GLOBO © 2005, Segunda a Sábado, 18H). Estava eu outro dia numa loja de discos — Deus, quantas histórias originadas numa loja de discos eu ainda irei contar? — procurando um CD de Paul Desmond extraviado na seção de jazz, quando ouvi aquela voz.

Ei, pensei, que gravação da Billie Holiday é esta que eu não me lembro? Repassei mentalmente os CDs na estante de casa, os 9 “Quintessential” da Columbia, os 2 da caixinha da Decca, os 2 da caixinha da Commodore, os 10 do caixote da Verve. Nada. Nenhuma idéia. Era pior que não me lembrar. Era desconhecer que blues era aquele.

Fui, então, até a banquinha da encarregada pela seção. Em cima, no suporte “agora tocando”, estava o CD “Careless love”, de uma cantora branca proustianamente chamada Madeleine Peyroux. Francesa? Canadense? Fui ouvir mais do disco num daqueles fones e descobri a versão para “Between the bars”, de Elliot Smith. Pronto. Estava apaixonado.

Não era a primeira vez que eu me apaixonava por uma voz viva. Na verdade, no quesito “paixão por vozes (vivas ou mortas)”, sou leviano pra carácas. No entanto, acho que antes só tinha arriado nos quatro pneus daquele jeito por Suzanne Vega, ouvida pela primeira vez como parceira numa das faixas do ciclo “Songs from liquid days”, de Philip Glass.

Chamava-a até de Suzaninha, cheio de intimidade. Fiquei todo bobo na distante tarde em 1990 em que a entrevistei por telefone e ela riu da minha pergunta babona: “Ouvindo você cantar tem-se a impressão de que — não importa quantos instrumentos estejam envolvidos na gravação — sua voz está sempre sozinha, de que você está cantando a capela. Isso é só uma impressão ou um jeito deliberado de arranjar ou mixar?”

Senti o mesmo quando ouvi os dois CDs solo de Madá, “Careless love” (2004) e “Dreamland” (1996). Há outro, em que ela atua mais como violonista, gravado com o gaitista William Galison, “Got you on my mind” (também de 2004). Ela parece estar sempre sozinha diante do microfone, uma Billie Holiday reencarnada. Mais verde em termos de voz e de vida, claro, mas com as mesmas inflexões, os mesmos miados.

Eu sei. A lembrança de Billie Holiday oprime Madeleine Peyroux como um pesadelo. Aqui, para a reportagem de Cultura da AGÊNCIA O GLOBO, ela deu uma resposta educada e direta ao repórter Eduardo Fradkin: “As pessoas ouvem Billie Holiday em minha voz porque eu aprendi a cantar com seus discos. Ela foi uma professora para mim. Mas a minha função como artista é criar algo extremamente pessoal. Tenho me dedicado a isso. É uma evolução natural”.

À Jennifer Odell, repórter da revista norte-americana de jazz “Downbeat”, na edição de Agosto último, São Keith Jarrett na capa, Madeleine respondeu irritada e críptica: “Uma referência a Billie é só uma maneira de explicar o que alguém faz sem que se seja capaz de compartilhar a experiência em primeira mão. (...) Isso é simplesmente um fenômeno de passagem da música para indústria. A música verdadeira acontece num nível cotidiano”. E por aí foi.

A balzaquiana, Madeleine, 31, natural do Estado da Geórgia, Sul dos Estados Unidos da América (EUA), o que explica o nome francês. Cantou nas ruas de Paris, para onde sua mãe foi depois do divórcio. A necessidade de agradar aos passantes — lembre-se de Ted Hawkins — explica o repertório eclético: em “Careless love”, além do mito country Hank Williams (autor do “Weary blues from waitin’” que ouvi na loja) e de Elliot Smith, há Leonard Cohen, Bob Dylan e W.C. Handy.

Este CD demorou oito anos para suceder a “Dreamland” não apenas porque deu a louca em Madeleine. De fato, volta e meia, dá a louca em Madeleine, e ela some, cancelando apresentações. Porém, ela teve de operar um cisto na garganta em 1999, o que compreensivelmente lançou sombras sobre o seu futuro como cantora profissional.

Em Belo Horizonte, no palco do Chevrolet Hall, na noite do dia 25 de Novembro último, Madeleine fez um lindo show, mas não como eu o imaginava. Por conta da semelhança vocal com Billie Holiday, antecipei algo com a intensidade de Lady Day. Enganei-me, e isso foi bom. Madeleine teve uma postura diferente. Ora tímida, ora debochada, jamais dramática. Nem quando — voz mais rouca do que nos CDs — entoou “Beetween the bars”.

Sorrindo, ela apresentou a balada-de-ninar de Smith como uma “canção de bar”. Sim, ela também é isso. Todavia, a extraordinária força poética da canção emana, em parte, do fato de que, em inglês, bars tanto pode ser mesmo bares quanto grades e compassos. Tudo faz sentido: “Beba, baby , olhe as estrelas, eu vou lhe beijar de novo/ Entre the bars onde eu estou lhe vendo/ Lá com as suas mãos no ar, esperando finalmente ser apanhado”. Adiciona tragédia à tristeza saber que Smith, a esta altura, está tomando uns tragos largos com a própria Billie Holiday: o músico americano se apunhalou mortalmente em 21 de Outubro de 2003, aos 34 anos. A versão de Madeleine é tão boa quanto o original que está no grande CD dele, “Either/or” (1997). Em vez do violão sinistro, o arranjo de “Careless love” faz pensar naquelas valsas caquéticas de Tom Waits.

No show no Chevrolet Hall, o bom gosto do repertório não foi afetado nem quando Madeleine cantou “La vie en rose” e “Smile”, prováveis sobreviventes de seus shows nos bulevares parisienses. Ela as fez rebrilhar, tornando-se tanto Piaf quanto Carlitos. Intrigado por sua figura desajeitada, constatei que algumas paixões resistem até à idealização.