Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, janeiro 23, 2010

A busca dos holofotes perdidos no caos

RIO DE JANEIRO (RJ) - ESTAS primeiras reações de autoridades brasileiras à entrada em cena da diplomacia dos Estados Unidos da América (EUA) nas operações de ajuda humanitária ao Haiti foram nada menos que constrangedoras. O ministro de Estado da Defesa, Nelson Jobim (PMDB-RS), de volta dos escombros de Porto Príncipe, por onde circulou em uniforme militar, não pensou duas vezes antes de condenar o "assistencialismo unilateral" do governo norte-americano, como se referiu ao fato de os militares dos EUA terem assumido o controle do aeroporto da capital haitiana. A tomar pelo valor de face as suas palavras, os militares dos EUA teriam desalojado os haitianos do local por iniciativa própria como primeiro passo para monopolizar a assistência ao país e criar as condições logísticas para o exercício de sua hegemonia no processo de reconstrução.

MAS NA realidade, o controle do aeroporto mudou de mãos a pedido do presidente do Haiti, René Préval, aflito com a falta de preparo das equipes locais e a insuficiência de equipamentos para dar conta do aumento exponencial de pousos e decolagens que se seguiu ao terremoto. Isso interferiu nos voos da Força Aérea Brasileira (FAB) transportando víveres, medicamentos e profissionais de saúde. "Há aviões demais e nós quisemos apenas evitar acidentes", disse ao Estado o assessor de Segurança Nacional dos EUA, Denin McDonough. O contratempo deixou agastado o ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim (PMDB-RJ), que se apressou a protestar à secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton. Ele considerou "até certo ponto natural" o ocorrido. O que o preocupa, segundo disse, é o Brasil ser tratado "com a prioridade adequada", numa alusão ao fato de o País comandar as tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti.

SEJAMOS razoáveis ora bolas, a prioridade absoluta para os haitianos é receber assistência, e com toda a urgência possível, parta de quem partir. A pirraça da diplomacia brasileira ignorou a realidade elementar, percebida desde logo pelo presidente Préval, de que nenhum outro país tem meios comparáveis aos dos EUA para socorrer o Haiti. E o organismo mais preparado para prestar socorro são as suas Forças Armadas. Além disso, a catástrofe obriga a repensar o papel da ONU na "estabilização" política daquele país. O mandato da Minustah nesse sentido terá de ser adaptado às novas e terríveis circunstâncias, incomparavelmente mais difíceis do que aquelas que levaram o Conselho de Segurança da ONU a determinar a sua criação, em Abril de 2004, depois do levante que derrubou o então presidente Jean-Bertrand Aristide. Hoje, enquanto a horda de desesperados percorre as ruas de Porto Príncipe, até o presidente Préval é um sem-teto.

E MESMO que a comunidade internacional fosse uma assembleia de querubins, concentrados unicamente em fazer o bem para o Haiti, a combinação da ajuda humanitária de que aquele país necessita desesperadamente com o estabelecimento de padrões mínimos e não menos essenciais de ordem e segurança na capital requereria por si só uma engenharia de extravagante complexidade e de custo exorbitante. Na vida real, porém, esse esforço passa ainda pelo cálculo dos governantes e por uma equação de poder que seria pueril fingir que não existem. Para o presidente da República dos EUA, Barack Houssein Obama, para citar o primeiro dos exemplos, o resgate do Haiti é ao mesmo tempo um ato de humanismo e uma oportunidade política para mostrar ao mundo do que os EUA são capazes quando se trata de fazer o oposto da destruição. A convocação dos ex-presidentes Bill Clinton e George Bush para a empreitada dá a ideia do que o Haiti representa para o governo Barack Obama. Interesses de afirmação nacional de outros países são igualmente legítimos. A questão é conciliá-los, de um lado, com a capacidade de ajuda de cada qual e, de outro, com o papel das instituições multilaterais.

EM UMA teleconferência organizada no último Domingo, 17, pela diplomacia do Canadá, com representantes de uma dezena de países (entre eles Amorim e Hillary), da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA), foi a primeira iniciativa de dividir o trabalho de administrar o inferno haitiano. Da reunião resultou o aparente consenso de que a ONU, basicamente por intermédio da representação brasileira, se ocupará da segurança e os EUA, da ajuda humanitária. Na prática, evidentemente, uma coisa e outra se entrelaçam, o que exigirá vontade efetiva de cooperar e aptidão para fazê-lo nessa que é uma autêntica situação-limite. Se der certo, o relacionamento bilateral Brasil-EUA terá superado uma das provas mais severas em muitos anos.