Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, janeiro 28, 2010

O fel da “obamamania”

O TERMO "sem precedentes" colou-se à pele do presidente da República dos Estados Unidos da América (EUA), Barack Houssein Obama – talvez, devido suas origens -, mas não só. Mas certamente o homem mais poderoso do mundo dispensaria de bom grado esse recente ineditismo associado à sua figura. Afinal, nenhum dos seus antecessores, ao completar um ano na Casa Branca, ganhou de aniversário um bolo de fel. O presente foi confeccionado pela maioria do eleitorado do Estado de Massachusetts (EUA) - um eleitorado que historicamente não perde para nenhum outro em matéria de simpatia pelo Partido Democrata. Na eleição extraordinária para preencher a vaga do senador Ted Kennedy, morto no ano passado depois de 46 anos de mandatos consecutivos marcados por consistentes posições progressistas, a candidata democrata Martha Coakley foi derrotada pelo republicano Scott Brown, um novato senador estadual mais conhecido por já ter posado seminu para uma revista de celebridades. Para Barack Obama, foram duas lautas porções de amargura.

NA PRIMEIRA, os efeitos práticos da transposição política de uma vaga no Senado Federal. Os democratas perderam a chamada maioria qualificada de 60 cadeiras a 40 - e, com isso, o poder regimental de impedir que a oposição obstrua a tramitação de projetos do governo, a começar do formidável plano de reforma do sistema de saúde, a mais vistosa bandeira eleitoral de Obama. Assim como a Câmara dos Representantes, o Senado Federal já aprovou uma proposta própria nesse sentido. Doravante, poderá bloquear a votação do texto que unifique as duas. A segunda fonte de amargura são os efeitos simbólicos do resultado. Cristalizam a percepção, atestada nas pesquisas, de que a “obamania” que brotou de sua campanha e cresceu com o seu triunfo foi amplamente substituída pela condenação às suas políticas e ao seu desempenho. Em um ano, o seu índice de aprovação caiu de quase 70% para 50%. A desaprovação foi de 12% para 44%.

DESSE MODO, Barack Obama só tem a culpar a si próprio por isso - o que admitiu com humildade numa entrevista à rede de TV ABC, semana passada. Ao assumir, parecia que ele acreditava piamente no seu toque mágico para unir o país em torno de propósitos comuns que deixariam para trás o conflito e a discórdia dos anos George W. Bush, como proclamou no discurso de posse. Decerto contava com o impacto de sua eleição "sem precedentes", o seu potencial para transformar carisma em liderança e o esfarelamento do Partido Republicano. Mas, sob a servidão de uma crise de proporções mundiais e da herança maldita do bushismo, que o obrigaram a lançar um pacote de estímulo econômico da ordem de US$ 800 bilhões e a sangrar o orçamento nacional com duas guerras em curso, Obama deixou a saúde por conta dos políticos e foi refazer a imagem dos EUA no mundo - , com relativo sucesso, embora os governos da China, Irã e Israel, cada qual a seu modo, o deixassem de mãos abanando.

BARACK Obama não deu o peso devido à rearticulação republicana sob o comando da extrema direita na mídia convencional e na blogosfera. Explorando a insegurança da população diante do desemprego galopante e das casas próprias ameaçadas, os velhos adeptos do capitalismo sem freios passaram a acusar o governo de fazer o jogo do grande capital financeiro (e, depois, da indústria automobilística), apontando para a ocupação da Casa Branca pelas mesmas “sumidades” cuja complacência - ou mais do que isso -, com a “banca” de Wall Street jogou a economia no abismo. Ao mesmo tempo, passaram a bombardear o plano da saúde com uma virulência sem limites. Por exemplo, o socialista Obama ia criar "comitês da morte", para selecionar quem teria ajuda médica e quem seria marcado para morrer. Enquanto isso, o movimento da "Festa do Chá" denunciava a suposta intenção de Obama de arrancar o couro dos contribuintes para financiar o trilionário esquema da "medicina socializada" e enfrentar um déficit público de 11% do Produto Interno Bruto (PIB) - como se não tivesse surgido da gastança desenfreada do governo Bush.

AVESSO à confrontação, cerebral, esquecido de que a polarização política nos EUA é profunda e duradoura - e, por fim, preso à prioridade "reforma da saúde" ante "empregos e casas" -, o presidente Obama mal reagiu ao vitríolo dos seus detratores, deixando que conquistassem vantagem na formação da opinião pública. Disso decorre o predomínio das avaliações negativas sobre o seu primeiro ano no poder, cegando muitos americanos para o avanço extraordinário que o seu governo representa em comparação com o do antecessor.