Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, dezembro 04, 2005

Do fausto à arrogância e ignomínia

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

A Quinta-feira, 01, foi só ressaca. Na dolorosa Quarta-feira, 30 de novembro, o Rio de Janeiro amanheceu com a notícia de mais uma barbárie na sua rotina de desgoverno, essa com requintes de crueldade; durante a manhã ainda, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a má notícia econômica de que o mergulho do Produto Interno Bruto (PIB) no terceiro trimestre foi pior do que a pior expectativa; na política o parlamento encerrou ao fim da noite o processo de cassação, sob acusação de corrupção, de um ícone da esquerda e da geração 1968. Tudo num dia só.

O voto fatal de número 257 foi anunciado pelo deputado Inocêncio de Oliveira (PMDB-PE) sob um silêncio de opositores e governistas. Minutos depois, com o placar final: 293 X 192, o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (PcdoB-SP) proclamou o resultado de forma burocrática e estava consumada a carreira política de José Dirceu (PT-SP). Afirmações de que ele continuará forte na política valem tanto quanto a de que ele governaria da planície.

O fato deixou um travo melancólico. Foi todo ruim. O mais ingênuo dos brasileiros teria dificuldade de acreditar que uma pessoa centralizadora, arrogante e prepotente como o ex-comissário do Palácio do Planalto Zé Dirceu permitiria que tudo o que houve antes, durante e depois das eleições de 2002 na tesouraria do Partido dos Trabalhadores (PT) fosse feito sem o seu conhecimento. Por outro lado, a cassação do mandato parlamentar de Zé Dirceu é um trauma. Pelo seu meio milhão de votos arrebanhados no eleitorado paulista e por sua trajetória.

O placar pode ser apenas a soma das “vendetas” pessoais, ou um marco de avanços institucionais. Se for só vingança contra o ex-grão-vizir truculento e poderoso, o País verá mais uma etapa da diminuição da confiança do eleitor em seus políticos. Avançaremos na construção da democracia se a descoberta do pagamento de propinas a deputados da base governista, o mensalão — que está absolutamente comprovado — fomentar a criação de métodos de controle, a transparência e a prestação de contas dos políticos e administradores públicos. Seis meses de crise política não podem ser subestimados pelo presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP), nem banalizados pelos políticos. O que aconteceu no Brasil é grave, precisa ter punição de todos os envolvidos, mas, sobretudo, permitir avanços institucionais. Do contrário, enfraquecerá a democracia. O risco ficará maior se o PT, em vez de fazer autocrítica, continuar culpando a imprensa, como fez o presidente do partido, deputado Ricardo Berzoini (PT-SP), e como fizeram todos os ditadores desde o início da genial invenção de Gutemberg.

Dias de cassação não são dias de festa na Câmara dos Deputados. No geral, não se vota com prazer pela retirada do mandato outorgado pelo povo, por maiores que sejam as divergências e idiossincrasias. Havia na última Quarta-feira, 30, dois tipos de deputados federais dispostos a votar contra o ex-comissário do governo petista, a maioria, temendo a Lei de Darwin na política: quem não o cassasse poderia ser cassado pelo povo na eleição de 2006.

Entre estes, muitos votariam por sua absolvição em outras circunstâncias — ou por terem dúvidas sobre seu papel na arquitetura da corrupção partidária ou mesmo por terem concordado e participado dela. Mas esse é um daqueles momentos em que a sobrevivência da espécie exige a seleção, a eliminação dos que representam ameaça e risco. E a espécie parlamentar sente a força dessas ameaças, ouvindo desaforos e cobranças por todos os meios.

Em outra categoria estão os que sempre viram no sempre arrogante ex-comissário Zé Dirceu o artífice do delubiovalerioduto, que sustentou o mensalão a mando do principal inquilino do Palácio do Planalto, e da solidariedade financeira para com os partidos aliados, com ou sem os repasses nos termos descritos pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ). Ao conceber tal esquema, revelaria ele um profundo e indisfarçável desprezo pela instituição parlamentar, do tipo “para governar com esta gente, só comprando”. Essa foi uma das acusações que Zé Dirceu negou com mais veemência no discurso de véspera, admitindo que a direção nacional do PT repassou dinheiro, sim, para os líderes dos partidos aliados na eleições em 2002 e 2004 e que está pagando por esse erro.

O dia seguinte a uma cassação costuma ser de ressaca moral na parlamento. Assim foi a última Quinta-feira, 01, com o mandato de Zé Dirceu cassado. Mas daqui a algum tempo, passada a purgação desta crise, será tempo de os congressistas refletirem sobre a conveniência do julgamento de deputados por seus próprios pares. O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) costuma dizer que isso é um arcaísmo que não existe em democracias modernas. Nelas, entende-se que uma cassação pelos pares, sob a desculpa de que o julgamento é político, pode ser contaminada por fatores subjetivos. No caso do ex-todo-poderoso-comissário do governo petista, as antipatias, os rancores, os antagonismos ideológicos, entre outros. O mais comum é que um deputado, tendo cometido um crime, tenha seu mandato suspenso pela Justiça até que seja julgado. Se condenado, automaticamente perde o mandato. Se absolvido, reassume, havendo ainda sempre a chance de julgamento pelo eleitor, na eleição seguinte.

De todo modo, o que houve na última Quarta-feira na Câmara dos Deputados foi um episódio singular, um daqueles avisos de que a roda da fortuna é traiçoeira, que quanto mais alta a palmeira, maior o tombo. Zé Dirceu, no poder, abusou da altura, e ele sabe disso. Ele mesmo, ao adentrar no Congresso Nacional naquele dia, resumiu a sua hora chegada: “quem diria, hein”!

A perda por dez anos dos direitos políticos do ex-capitão do Palácio do Planalto (como o chefe gostava de referi-se ao subordinado no início desse governo), tornando-o inelegível até Janeiro de 2016, é um marco histórico na política brasileira e simboliza a derrocada do PT, partido que ajudou a fundar há exatos 25 anos e do qual foi o maior organizador dos últimos anos. O agora ex-deputado havia sido eleito com mais de 500 mil votos em São Paulo na onda da vitória de Luiz Inácio da Silva para presidente da República, que ajudou a tornar realidade. Identificado como o principal responsável pela organização de um esquema de corrupção que fez inchar a base partidária do governo na Câmara dos Deputados à custa de distribuição de cargos e de dinheiro, Zé Dirceu tentou durante quatro meses evitar a cassação do seu mandato popular, que se consumou na noite da última Quarta-feira como uma resposta da Câmara dos Deputados aos anseios da opinião pública, que via na sua eventual absolvição o sinal mais alarmante de um grande acordo para evitar a punição do principal líder político do PT.

O vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (2003-6) sentiu o golpe. Ou melhor, os golpes que vieram ao mesmo tempo, misturando o tempo político com o econômico: a forte queda do Produto Interno Bruto (PIB) no terceiro trimestre e a cassação do mandato do antigo capitão de seu time.

Há muito tempo o presidente não revelava na face toda sua angústia como na noite de Quarta-feira, em Curitiba (PR), quando perguntou que País agüentaria uma crise política como a que vivemos há cerca de seis meses, sem que a sua economia fosse abalada. Mais uma vez a áspera realidade vem obrigar Luiz Inácio da Silva a sair do seu mundo imaginário e a encarar as complexas questões da política brasileira, que não são triviais como parecem freqüentemente em seus improvisos, e como pareciam quando comandava as bravatas do outrora PT oposicionista.

É impressionante como os petistas estão pagando, um a um, pelas posições radicalizadas que assumiram nos últimos 25 anos. Desde o moralismo exacerbado que levou o finado líder do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e ex-governador dos estados do Rio Grande Sul e do Rio de Janeiro Leonel de Moura Brizola a apelidar o PT de “a UDN de macacão”, até a solução fácil para todos os problemas pela “vontade política”, que transformaria em ouro tudo o que o PT tocasse.

O então todo-poderoso capitão Zé Dirceu, que cunhou a frase: “Este é um governo que não rouba nem deixa roubar”, teve o mandato cassado por comandar um amplo esquema de corrupção política dentro da Câmara dos Deputados em benefício do governo. Ninguém é capaz de acusar Zé Dirceu de corrupto, como ele se defendeu na tribuna da Câmara dos Deputados, mas sim de corruptor.

Até mesmo a atuação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que lhe deu acolhida em vários recursos na sua luta para escapar do processo de cassação, já havia sido criticada por Zé Dirceu em seus tempos de guerrilheiro oposicionista, como se viu nas declarações relembradas pelo líder do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), deputado Alberto Goldman (PSDB-SP).

A falta de provas que ele tanto alega para classificar sua cassação como “um linchamento político” — com o apoio público do presidente da República — não foi argumento suficiente quando o STF absolveu o ex-presidente da República Fernando Collor de Mello (1990-92). Na época Zé Dirceu indignou-se com a decisão, e disse textualmente que não eram necessárias provas cabais, pois todos sabiam que Collor era corrupto. Exatamente o que alegaram com sucesso sobre sua atuação no comando do mensalão.

A cassação do mandato parlamentar do ex-comissário teve um efeito avassalador para a imagem do governo. Trouxe à tona novamente toda a crise política que se iniciou com as denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson, como a repisar as culpas do próprio presidente da República nos episódios. Novas cassações se seguirão à de Zé Dirceu, dissipando-se do cenário a possibilidade de uma pizza que livrasse os petistas do castigo final. Depois de cassar Dirceu, por que não cassar o ex-presidente da Câmara (2003-4) João Paulo Cunha (PT-SP) ou o ex-líder do PT naquela Casa deputado Professor Luizinho (PT-SP)?

Mas os processos entrarão por 2006 adentro, ano em que Luiz Inácio da Silva terá que reorganizar suas forças políticas para tentar a reeleição. Não poderá contar com a maior parte do “núcleo duro” que coordenou a campanha e o assessorou nos primeiros meses no Palácio do Planalto. Com exceção do secretário-geral da Presidência da República, Luiz Dulci (PT-MG), estão todos avariados politicamente, atingidos em graus variados pelas denúncias.

Zé Dirceu, o ex-coordenador político, está cassado; o marqueteiro Duda Mendonça foi flagrado recebendo milhões através do delubiovalerioduto no exterior; o ex-presidente do PT José Genoino (PT-SP) curte o ostracismo político; o ex-ministro da Comunicação Institucional da Presidência da República Luiz Gushiken (PT-S) está recolhido ao Núcleo de Assuntos Estratégicos tentando se defender de um provável indiciamento pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que apura as irregularidades nos contratos da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).

E o ainda ministro de Estado da Fazenda Antonio Palocci Filho (PT-SP), o último dos sobreviventes em atividade política de peso no governo, vive sob a dupla ameaça que vem do passado em Ribeirão Preto e o presente econômico sendo questionado, principalmente por seus aliados.

O vosso presidente da República que até poucos dias se vangloriava de que a crise política não afetara a economia, agora culpa a política pelos maus resultados do terceiro trimestre. Números que apenas no dia anterior, com a divulgação da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considerava excelentes, como nunca se vira nos últimos 20 anos. O prometido “milagre do crescimento” não aconteceu, e nem acontecerá tão cedo num governo que é ambíguo com relação ao rumo a seguir.

Ao mesmo tempo em que promete que não abrirá mão do equilíbrio fiscal no ano eleitoral, estimulou a discussão sobre os gastos correntes do governo, que para a ministra-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República Dilma Rousseff (PT-RS) “é vida”, e para o assessor especial da Presidência da República Marco Aurélio Garcia (PT-SP) não podem ser cortados. O fato é que o governo entra em seu último ano com uma média de crescimento da economia semelhante à dos governos anteriores, que tanto criticava. Com agravante de que estamos passando por um período de abastança internacional sem que crises globalizadas prejudiquem nossa economia.

O desastre do PIB no terceiro trimestre tem impacto político imediato: vai aumentar no governo a pressão contra as políticas fiscal e monetária. Os ministros Rousseff (Casa Civil), Paulo Bernardo (Planejamento Orçamento e Gestão) e Palocci (Fazenda) ficaram até as dez e meia da noite da última Terça-feira, 29, em reunião no Palácio do Planalto, discutindo formas de agilizar a execução do orçamento. Estava tudo bem, até que chegou a informação da queda do PIB maior do que a prevista. Foi a única hora em que o clima azedou.

Rousseff reclamou do número. Os ministros da área econômica têm atenuantes que foram apresentados na conversa: o quarto trimestre certamente terá um número positivo, o que mostra que o País não está entrando numa recessão; está, sim, num vale. Há questões metodológicas concentrando o peso do PIB agropecuário no terceiro trimestre e isso acentuou o negativo. O consumo das famílias continuou subindo. Nada disso melhorou o clima.

No Banco Central do Brasil (BC), a explicação que se dá é que a economia vinha crescendo fortemente no terceiro trimestre quando foi colhida pela tempestade política. É a crise política — e não apenas os juros — a causa da queda do PIB além do projetado. Há vários indicadores confirmando isso: o Índice de Expectativa do Consumidor medido pela Federação do Comércio do estado do Rio de Janeiro, e o Índice de Confiança do Consumidor medido pela Federação do Comércio de São Paulo, mostraram queda justamente no terceiro trimestre. Em Novembro, ambos melhoraram, o que pode indicar um quarto trimestre um pouco melhor.

Tudo isso junto não é tempero suficiente para fazer um molho agridoce que seja. A área do governo que criticava o excesso dos juros altos e o excesso dos cortes nos gastos agora vai aumentar o tom e a intensidade das críticas, já que está na confortável situação de poder dizer: “Eu não disse?”.

Bancos centrais em regimes de metas de inflação têm que olhar principalmente para a inflação. A meta de 2005 será atingida, mas a maestria está em fazer um ajuste fino para chegar ao objetivo ao menor custo possível em termos de produto. Na Sexta-feira, 02, a frase mais repetida no governo foi que os técnicos do BC erraram na dose.

Os juros estão altos demais mesmo, e aqui este articulista ficou rouco de tanto dizer isso. Por outro lado, os empresários, quando levantam a voz contra os juros altos, com a ajuda do vice-presidente da República José Alencar Gomes da Silva (PR-MG), e outros menos votados, esquecem de alguns detalhes. Primeiro, 1/3 do crédito no Brasil é Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). E quem toma empréstimo no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) paga a taxa de 9,75%. Segundo, uma parte do crédito é do setor rural, cuja taxa de juros é de pouco mais de 8%. A enorme taxa de 18,5% é paga principalmente pelo governo. Mas esse assunto não pode nem ser tratado no governo. Quando alguém fala isso, a reação é violenta por parte dos que temem estar atrás disso alguma tentativa de restringir a ação do BNDES.

Para azar da equipe econômica, o resultado do PIB aparece quando estava quase resolvido o pior momento da tensão política interna no governo por causa da política econômica. “Se éramos criticados quando o país estava crescendo, imagine agora”, disse Quinta-feira um economista do governo.

Para se saber a intensidade da crítica à equipe econômica, é preciso antes entender o que é isso: recessão ou vale? É vale. Mas tem força para achatar o crescimento do ano. Na semana passada, como dissemos aqui, os economistas estavam revendo para menos de 3%. Ontem, eles iam para perto de 2,2%. O melhor cenário era de 2,5%, que só acontecerá se houver um crescimento no quarto trimestre de 2,3%.

Um dado que costuma antecipar o que vai acontecer na economia é o de venda de papel ondulado. Com esse papel, se faz embalagem. Ele só cresce, então, quando há crescimento de produtos a serem embalados. Até Outubro, o acumulado no ano foi de apenas 2% de alta. Em Setembro, cresceu pouco: 0,11% contra o mês anterior; em Outubro caiu bastante: 1,83%. Esse dado mostra que a recuperação do quarto trimestre não será forte. Portanto, o PIB deve ficar mesmo um pouco acima de 2%.

A economia do Brasil está ficando para trás em relação a todo mundo este ano. Para se ter uma idéia. A economia dos países que formam a Zona do euro, que vivia estagnada, cresceu 0,6% no terceiro trimestre comparado ao segundo, a economia do Japão, outro paradão, cresceu 0,4%, a economia dos Estados Unidos da América (EUA) teve um número muito acima do esperado, 1,05%. Enquanto a economia do Brasil despencou 1,2%.

Pior fica a comparação do terceiro trimestre contra o terceiro trimestre de 2004. No Brasil, o resultado foi um magérrimo 1%. No México, 3,3%; Chile, 5,3%; Coréia, 4,4%; Zona do euro, 1,6%; Alemanha, 1,4% e EUA, 3,7%.

Os números ajudam quem defende a tese de que as políticas monetária e fiscal estão erradas. O clima ficou azedo mesmo em torno da equipe econômica.

Houvesse no governo posições mais harmônicas sobre a política econômica, certamente o resultado seria bem diferente. É o chamado “custo PT” cobrando seu pedágio. De um lado, a política macroeconômica tem que ser mais ortodoxa para sinalizar a seriedade da escolha. Por outro, o crescimento dos gastos públicos prejudica o equilíbrio fiscal. Para sorte do equilíbrio fiscal, parece não haver tempo para uma mudança de rumos na economia, nem disposição para tal do presidente da República. Mesmo porque se decidisse enfrentar a campanha eleitoral de 2006 com uma postura populista — coisa que reiteradamente recusa — o vosso presidente Luiz Inácio da Silva quase certamente provocaria uma crise econômica que tiraria de vez suas chances de se reeleger.

A pressão por gastos provocará, no entanto, momentos de tensão, a começar pela definição do Salário-mínimo em ano eleitoral, com repercussões no déficit das contas da Previdência e Seguridade Social, mas também no eleitorado de baixa renda, onde hoje se concentra a força do seu eleitorado.

A economia brasileira afundou num trimestre em que as outras economias do mundo floresceram e brilharam. O contraste ficou maior. Quinta-feira, por coincidência, houve no Rio, na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), um almoço em homenagem ao ministro Palocci. Foi agendado no auge da briga com a ministra Rousseff, calhou de acontecer no dia seguinte ao anúncio da queda do PIB.

Palocci disse que a crise política afetou a economia: “Isso não significa que não devam ser feitas as investigações devidas. As instituições têm que dar suas respostas”.
Acontece nos melhores times. O armador, quando quer, tem a bola literalmente a seus pés; o artilheiro, se desejar, manda-a para o canto que escolher — até mesmo aquele em que a coruja dorme.

Estranhamente, mesmo com esses craques no time, o time mais empata do que vence, mais perde do que merece. Porque a dupla não se entende, mal conversa. A arquibancada inteira sabe que nenhum dos dois entra em campo para pôr azeitona na empada do outro.

Só um competente treinador pode dar um jeito na situação. E qualquer ajudante de massagista sabe o que ele deve fazer: chamar as estrelas a um canto, soltar meia dúzia de impropérios para animar a conversa e dar ordens: você vai fazer assim e assim, e você fará assado e assado. Seria ótimo se um concordasse com o outro, mas o que interessa mesmo é os dois saberem que quem manda aqui sou eu — e eu sei direitinho o que quero e como quero.

Se o moço entende do ofício e o resto do time garante, está resolvido o problema. Mas nada disso acontecerá se a conversa do treinador for papo de cerca lourenço: não sei mesmo qual é o caminho certo para o gol — mas tenho certeza de que todos respirarão melhor aqui no clube se pelo menos vocês tiverem uma boa conversinha em particular e pararem de falar mal um do outro em público.

Em Brasília (DF), na Terça-feira, o time governamental anunciou outro dia que funcionou direitinho a receita da macia conversa a sós entre o Palocci e a cada-vez-mais-poderosa ministra Rousseff. Não mais se terá notícias de divergências públicas, e foi anunciado um “acordo de procedimentos” entre ambos.

Quem sabe o que é um acordo de procedimentos, correspondências para este jornalista, por favor. Certamente não quer dizer que os dois ministros de Estado passaram a ver a realidade com os mesmos olhos, começarão a agir taticamente da mesma forma e têm seus objetivos hierarquizados na mesma ordem.

Tampouco sequer foi insinuado que ambos teriam adaptado suas visões estratégicas e táticas sobre os problemas nacionais àquela que se imagina defendida pelo vosso presidente da República.

Não seria mesmo simples. De Luiz Inácio da Silva (PT-SP) se conhecem bem os sonhos, a biografia sofrida, as lutas sindicais — e muito pouco ou nada sobre a visão do governo e de estado ao longo prazo, a hierarquia dos problemas e dos projetos, a noção das limitações, o senso de timing e por aí afora.

Nas ruas do Rio de Janeiro, a barbárie aconteceu no meio de mais um afastamento da governadora do estado Rosinha Matheus (PMDB-RJ). Ela tem problemas de saúde, mas pareceu saudável nos prematuros atos de campanha do seu secretário de governo dileto esposo, Anthony Garotinho (PMDB-RJ), aos quais compareceu recentemente. A opinião pública vê bandidos queimarem pessoas dentro de um ônibus, inclusive uma criança, sem ouvir uma palavra de conforto do casal de governadores fluminenses. A cidade do Rio de Janeiro continua linda, e tolerando o intolerante. Um sistema judiciário só é realmente justo se souber se expressar. Isso significa usar em suas sentenças termos técnicos — ainda mais aqueles em latim — apenas quando for absolutamente necessário, e obrigatoriamente explicá-los aos cidadãos diretamente interessados.

Infelizmente, existe no Judiciário (e não apenas no brasileiro) a mania de empolar. Antes que eu caia no mesmo erro, explico: isso significa tornar pomposo, bombástico. O vício não é apenas formal: ele significa que grande número de brasileiros vai para a cadeia sem saber exatamente de que forma infringiu qual Lei. Ou escapa dela na mesma ignorância. Raramente seus advogados corrigem o problema: a maioria deles também fala assim. Aparentemente, temem que usar linguagem coloquial é sinônimo de ignorância. E escrevem coisas como “o réu vive de espórtula, tanto que é notória sua cacosmia”. Segundo Aurélio Buarque de Hollanda, espórtula é esmola e cacosmia é gostar de maus cheiros ou senti-los em toda parte (de que forma isso pode ser notório, não dá para entender).

Está certo que o sistema judiciário tem problemas mais sérios. Também é preciso reconhecer que a maior parte das mudanças que visam a tornar a Justiça mais justa tem nascido nos próprios tribunais.

É, portanto merecedora de encômios (como diz a turma que, coitada, sofre de boca de foro) a iniciativa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) de lançar uma campanha para “promover a reeducação lingüística” de advogados, juízes e promotores. (A propósito, para quem estava distraído, promover reeducação lingüística significa ensinar a escrever em língua de gente.).

As intenções da campanha são as melhores. Como disse há algum tempo o ministro do STF Ayres Britto, ajudar as pessoas comuns a entender o que se passa nos julgamentos é uma forma de deixar a Justiça mais próxima da sociedade. Em suas palavras: “Para mim, o direito demanda formalidade. Mas não é preciso exagerar na dose!”.

Outros juízes afirmaram que a linguagem complicada não é deliberada: seria apenas uma tradição do direito. Mas mesmo esses concordam que a Justiça será mais eficiente se suas decisões forem mais bem entendidas.
Seja como for, por enquanto seguremos os aplausos: tenho o dever de informar que todas as informações e declarações aqui transcritas foram colhidas em notícia anunciando o início da campanha. Foi publicada pela reportagem desta AGÊNCIA O GLOBO de 10 de abril passado. De então até hoje, anunciaram-se algumas palestras, mas nada sobre progressos reais. Espera-se que seja sinal de modéstia, não de desalento.
A obrigação de conceder o benefício da dúvida obriga-nos a imaginar que a campanha prossegue, vigorosa embora em peculiar silêncio. Mas acontece que brasileiro tem medo de fogo de palha, e apreciaria muito ser informado de que, na verdade, a proposta se espalhou como incêndio em mato seco. A falta de notícias ainda não nos permite sentir no ar mau cheiro do desalento. Como diria o outro, é cedo para um comportamento cacósmicoável.