Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, março 28, 2006

Pequenos detalhes

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Um detalhe pequeno (mas importante) que adoro nos filmes de Woody Allen: a abertura, sempre igual, com a mesma tipologia compondo as letras brancas vazadas sobre o fundo preto, enquanto uma música dá o tom do que virá.

Em “Ponto final — match point” esta música é, pela primeira vez, uma ária de ópera: “Una furtiva lacrima”, de “O Elixir do Amor”, de Donizetti. Mas como Woody Allen é Woody Allen, a gravação é mono, antiga e aparentemente sem remasterização, e a voz é de Enrico Caruso. É ele também quem canta “Mi par d’udir ancora”, do “Pescador de pérolas”, de Bizet, e outros trechinhos diversos — inclusive um, informa o Internet Movie Database (imdb para os íntimos), de Carlos Gomes.

Com todo este variado cardápio musical, porém, o que ficou mesmo rodando na vitrola que ainda se esconde num desvão da minha cabeça foi a antiqüíssima gravação da abertura, vinda aparentemente do princípio dos tempos. Sinceramente: “Una furtiva lacrima”, ouvida assim, dá vontade de cortar os pulsos. Não é à toa que esta é uma das árias mais populares da História.

Atribuo boa parte do clima de “Ponto final — match point” à sua inesperada e espetacular trilha sonora. A ópera tem uma densidade dramática imbatível, que sublinha e acentua o destino inelutável das personagens. Não há jazz, samba ou rock’n roll que façam isso.

O filme (muito pouco “woody-alleniano”) é extraordinário, uma espécie de “Crime e castigo” remixado com Shakespeare e um quê de tragédia grega, tenso do começo ao fim. Uma bola de tênis filmada em câmera lenta, que ao bater na rede tanto pode cair para um lado quanto para o outro, é a metáfora perfeita para uma parábola sobre a sorte, em que, naturalmente, nem sempre as aparências correspondem à realidade. A moral da história — cuidado com o que você pede aos deuses: eles podem atender ao seu pedido — não chega a ser nova; mas o final é. Há tempos Woody Allen não faz um filme tão bom.

Empolgado com esta obra-prima, resolvi botar minha vida cinematográfica em dia e também fui ver “Boa noite, boa sorte”, de George Clooney. É ótimo!

Você sabe, claro: este é aquele filme em P&B que mostra o duelo verbal entre o apresentador Edward R. Murrow (David Strathairn, perfeito) e o senador Joseph McCarthy (ele mesmo, em fitas antigas). Qualquer semelhança entre a caça às bruxas da época (que passou à História com o apropriado nome de “macarthismo”) e a atual paranóia antiterrorista norte-americana não é mera coincidência — mas diga-se a favor do diretor e do roteirista que eles confiaram na inteligência da platéia e não forçaram a mão em momento algum.

Grande arte é o Cinema!

De engodos e derrotas
WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


A demissão do médico paulista Antonio Palocci Filho (PT-SP) do Ministério da Fazenda é emblemática porque deixa a descoberto dois aspectos graves da crise que domina a última metade do governo do vosso presidente-candidato da República Luiz Inácio da Silva (2003-6), aspectos que se entrecruzam formando um amplo painel do que seja a atuação do Partido dos Trabalhadores (PT) nas últimas décadas: o aparelhamento do Estado com fins partidários, que resultou na maior crise institucional já vivida pela nossa democracia desde o fim da ditadura militar (1964-85), cuja face mais vistosa foi a quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa; e o desmanche em praça pública da estrutura política que levou o ex-líder metalúrgico Luiz Inácio da Silva (PT-SP) ao Palácio do Planalto.

A confirmação do também demitido presidente da Caixa Econômica Federal, o economista Jorge Mattoso (PT-PI), de que ele mesmo entregou pessoalmente, no último dia 16, o extrato do caseiro em mãos ao então ministro de Estado da Fazenda Antonio Palocci Filho, mostra a face mais cruel do aparelhamento do Estado: usá-lo para constranger eventuais adversários. Mattoso é da mesma facção petista à qual pertence a ex-prefeita da Capital paulista (2001-4) e pré-candidata ao governo do Estado de São Paulo dona Marta Suplicy (PT-SP), os demais técnicos que participaram da operação eram militantes do petismo colocados em postos de destaque na hierarquia da CEF.

Se aceitarmos a tese, defendida pela sua família e pelo Ministério Público, de que o assassinato do ex-prefeito da cidade Santo André, Celso Daniel (PT-SP), quando este já estava escolhido como o coordenador da quarta campanha de Luiz Inácio da Silva à Presidência da República, tem a ver com os desvios de conduta da base municipal petista na arrecadação de “dinheiro não contabilizado” (vulgo caixa dois) para as campanhas políticas do partido, veremos que, de uma maneira ou de outra, a forma de financiar o PT para a chegada ao poder central tem a ver com a tragédia que se abateu sobre o partido. Tragédia que não deixou em pé praticamente ninguém do núcleo (duro) central de poder que imaginou a estratégia e coordenou a campanha presidencial vitoriosa em 2002.

Os relatos de membros do PT original, que integraram a primeira leva de militantes petistas que chegou ao poder, como os sociólogos e economistas Paulo de Tarso Venceslau e César Benjamim, já davam conta de que nos anos 1990 o PT já se utilizava de arrecadação ilegal de fornecedores de seus governos municipais para se financiar.

Os maiores amigos do ex-líder sindical Luiz Inácio da Silva, o também sindicalista Paulo Okamotto (hoje presidente do Sebrae) e o empresário (compadre) Roberto Teixeira, já estavam envolvidos, desde os primeiros momentos, nas denúncias de corrupção das prefeituras paulistas onde o PT venceu as primeiras eleições, e continuam hoje envolvidos em episódios nebulosos como o do empréstimo pessoal do de Luiz Inácio da Silva pago por Okamotto, ou vantagens financeiras, não necessariamente ilegais, auferidas por Teixeira em negócios envolvendo o governo.

O chamado “núcleo duro” do governo Luiz Inácio da Silva, responsável pela montagem da nova estrutura da administração pública, e pela estratégia de ação do governo, foi sendo deixado pelo caminho, à medida que seus membros foram se tornando inconvenientes ao projeto maior que animava a todos, a manutenção do poder a qualquer custo.

Antes de Palocci, o coordenador da campanha eleitoral e esteio do governo na área econômica, caíra o homem forte do governo, o ex-comissário-todo-poderoso-ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República e ex-deputado José Dirceu (PT-SP). Ele está hoje às voltas com a tentativa patética de recuperar no Supremo Tribunal Federal o mandato parlamentar cassado no Congresso Nacional por ter sido identificado por seus pares como o coordenador do mensalão, que comprou corações e mentes para o apoio parlamentar ao projeto de poder.

O homem da estratégia e comunicação do início do governo, o ex-sindicalista Luiz Gushiken (PT-SP), está exilado na subsecretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, depois de ser humilhado publicamente sofrendo dois rebaixamentos seguidos de suas funções, e ainda corre o risco de ser indiciado no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito que apura as irregularidades nos contratos da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos no governo petista - a CPI dos Correios -, como manipulador das verbas publicitárias e dos fundos de aposentadorias e pensões de empresas estatais a favor da cooptação política.

Do núcleo original, sobrou o secretário-geral da Presidência da República Luiz Dulci (PT-MG) que, como bom mineiro, permanece nas sombras, longe de qualquer envolvimento com as falcatruas que vão sendo reveladas, mas longe também de qualquer tipo de poder mais ostensivo. Cogitado para ser o presidente do PT em substituição ao ex-ministro de Estado da Educação Tarso Genro (PT-RS), Dulci que foi um dos fundadores do PT como sindicalista da área de educação, declinou do convite e continuou em seu bünker no Palácio do Planalto.

Nunca houve na história recente do Brasil um governo que tenha se desmanchado no ar durante o seu desenrolar como este. A campanha pela reeleição, que já foi uma incógnita, parecia um segredo de polichinelo há poucas semanas e hoje entra novamente em uma zona cinzenta, se acontecer, deverá ser travada com o apoio de um partido político enfraquecido como o atual PT, e de uma equipe de segunda mão na hierarquia política do grupo que chegou ao poder em 2003.

Mais do que nunca, a possibilidade do presidente-candidato Luiz Inácio da Silva se reeleger está dependente de seu carisma pessoal, de sua capacidade de comover e convencer o seu eleitorado de que ele é o pai (e não o padrasto) dos pobres e não tem nada a ver com os repetidos desmandos e nódulos de corrupção dos diversos escalões de seu governo.

Dois temores ajudaram a prolongar a agonia do ex-ministro Palocci no Ministério da Fazenda. O primeiro já se confirmava logo após a sua demissão: o delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo (PCESP) Benedito Valencise anunciou que o indiciaria por irregularidades em sua gestão na prefeitura de Ribeirão Preto (SP). O outro é o medo de que o presidente-candidato Luiz Inácio da Silva torne-se agora o próximo alvo da Oposição através da Comissão Parlamentar de Inquérito que apura a irregularidades nos contratos da Caixa Econômica Federal na área de jogos eletrônicos no País – a CPI dos Bingos -, em andamento no Senado Federal; incendiando a campanha eleitoral.

O anúncio imediato do ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o economista Guido Mantega (ex-aluno do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso na Universidade de São Paulo - USP) para o cargo até então ocupado por Palocci foi uma opção feita por Luiz Inácio da Silva havia alguns dias, quando passou a trabalhar com a hipótese de ter mesmo que afastar Palocci e fez parte de um esforço para mostrar que o presidente-candidato não ficou isolado e sem alternativa. Mantega deu rápida entrevista, ao receber o cargo na tarde de ontem, para dizer isso e o mais importante: que a política econômica não muda e é do próprio presidente da República, seu fiador. Mas é inegável que a saída de Palocci, nas condições em que ocorreu, foi um golpe tão ou mais duro que a queda do ex-comissário Zé Dirceu. Luiz Inácio da Silva agora terá que refazer seus pilares. O governo fica mais frágil e maior o estoque de munição que a Oposição usará na campanha presidencial que já começou, tornando mais incerta a reeleição que neste início de ano voltara a ser possível. Agora, quem blinda Luiz Inácio da Silva? o povo, diziam ontem alguns petistas, numa referência ao maior capital restante ao presidente: seu carisma e seu apoio nas classes populares. Uma das condições estabelecidas para a permanência de Palocci era a de que seu caso não começasse a contaminar o vosso presidente da República. E no último fim de semana houve sinais de que isso começava a acontecer.

“Temos que pagar por nossos erros”, disse Palocci em seu canto do cisne na última Sexta-feira, 24, ao falar num almoço para políticos empresários na sede da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em São Paulo. Sua queda não decorreu da controvérsia sobre ter ou não ter freqüentado a casa mal afamada no Lago Sul, em Brasília (DF), em companhia de ex-colaboradores do tempo em que foi prefeito de Ribeirão Preto (SP), mas da quebra e do vazamento do sigilo bancário do caseiro Francenildo, que provocou tão fortes reações. No instante em que o presidente da CEF, Jorge Mattoso, disse em seu depoimento, no DPF em Brasília, ter entregado o extrato de Francenildo ao próprio Palocci, este entrou em queda livre. Luiz Inácio da Silva soube imediatamente, através do ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos (PT-SP). Chegava ao fim o enredo mais equivocado em que já se meteu um governo, o de cometer um crime para tentar esclarecer uma suspeita, a de que o caseiro recebera dinheiro para ajudar a Oposição a derrubar o ministro de Estado da Fazenda. Podiam ter feito isso pelas vias legais.

As reações foram positivas, a punição do crime também. Ajudam a valorizar os direitos e garantias individuais e a esconjurar violações. Mas os métodos da Oposição também merecem alguma reflexão. Eles não justificam o erro cometido. Não tornam a Oposição responsável pelas conseqüências mas é preciso conhecê-los para se entender o grau e o limite da luta política em curso. Palocci fala disso quando se refere, na carta de demissão, a “todo tipo de maldade”. Se no início da crise a Oposição o blindou, neste início de ano, com a recuperação da popularidade de Luiz Inácio da Silva nas pesquisas, transformou-o em bola da vez. Palocci se queixou na carta de que assuntos que já pareciam superados foram retomados pela “exacerbação da luta política”, tornando-o “alvo de todo tipo de maldade e acusação”. Referia-se às investigações sobre suas relações com a “turma de Ribeirão Preto”, retomadas pela CPI dos Bingos este ano, quando alguns senadores descobriram um motorista que disse tê-lo visto na tal casa. Depois, surgiu o caseiro Francenildo Costa.

No início de Janeiro a senadora e pré-candidata à Presidência da República Heloisa Helena (PSOL-AL) teve uma conversa de oito horas com a famosa cafetina em Brasília, Jeany Mary Corner, registrada aqui por este jornalista. A conversa deu à senadora a certeza de que ele estivera na tal casa do Lago Sul. Faltava levá-lo a mentir à CPI, aonde iria em breve. Foi o que se deu.

O artigo 15 da Lei 9.613, que criou o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) diz: “O Coaf comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito”.

As estatísticas do próprio Coaf indicam que em 2004 o órgão recebeu 85.152 comunicações de operações atípicas ou em espécie, e apenas 453 (0,53%) foram encaminhadas para investigação pelo Ministério Público e pelo Departamento de Polícia Federal.

Isso quer dizer que não se sustenta a versão do presidente do Coaf, Antonio Gustavo Rodrigues, de que apenas cumpriu a lei ao encaminhar ao DPF um pedido de investigação sobre a poupança do caseiro Francenildo Costa. O Coaf poderia não ter dado curso a essa manobra de coação contra uma testemunha incômoda ao governo.

Se a Oposição pôs a corda no pescoço de Palocci, ele mesmo puxou o laço ao envolver-se na quebra do sigilo, conforme informou ao delegado da Polícia Federal o ex-presidente da CEF, Jorge Matoso.

Resta saber se estará saciada a Oposição ou se a CPI dos Bingos vai agora mirar Luiz Inácio da Silva. Para isso, tem os casos “Okamotto” e “Gamecorp – Telemar”. Tudo indica que a nova batalha começa hoje mesmo. Um tal tiroteio contra um presidente-candidato, a poucos meses da eleição de Outubro, fará da campanha um campo minado.