Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, junho 28, 2009

Incógnita transformação

JÁ SE tornou uma platitude dizer que os protestos de rua dos últimos dias em Teerã são as mais contundentes manifestações espontâneas ocorridas no Irã desde o formidável movimento que há 30 anos uniu a nação milenar contra o sistema monárquico e abriu caminho para a instauração da República Islâmica, sob a inspiração do implacável aiatolá Ruhollah Khomeini. No entanto, os acontecimentos desencadeados pelo que tudo indica ter sido a fraude em larga escala com a qual a teocracia tratou de assegurar a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, seu fiel servidor, vão além disso. Constituem a mais fascinante expressão de descontentamento maciço com a sonegação dos princípios fundamentais da democracia e das liberdades políticas já vista no mundo desde a revolta popular que há 20 anos pôs abaixo o Muro de Berlim e, na sequência, soterrou o comunismo no Leste Europeu.

NÃO SE quer dizer com isso que a história está fadada a se repetir no Oriente Médio, embora seja significativo que, logo na primeira hora das passeatas, autoridades iranianas tenham advertido que não haverá lugar para uma "revolução de veludo", como os levantes em geral pacíficos que alforriaram os então Estados-satélites da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O desenrolar do que poderá ser, ou não, a crise terminal do regime dos turbantes é evidentemente uma incógnita. O essencial a ressaltar, de todo modo, é a singularidade do confronto no primeiro país muçulmano a adotar na era contemporânea a primazia dos mandamentos corânicos - e numa interpretação integrista - sobre as leis e as instituições nacionais. A face literalmente mais notável daquilo que distingue esse conflito é a irrupção, como arma de combate político, do que a tecnologia das comunicações tem de mais moderno e acessível a milhões de pessoas.

PORÉM, não se trata apenas, o que já não seria pouco, do uso em si da internet, especialmente por meio de telefones celulares, para o registro e o envio de imagens e textos que em instantes percorrem o globo, tornando patéticas as tentativas governamentais de cercear a difusão da verdade dos fatos nas ruas iranianas - a magnitude dos protestos e a sua sangrenta repressão. A utilização sem precedentes de tais facilidades, além de compensar em certa medida os efeitos do banimento dos correspondentes estrangeiros no país, introduz um dado novo na equação política iraniana e na resposta da comunidade internacional aos eventos em curso. Isso conta: apesar do seu fanatismo e da sua clamorosa hostilidade ao Ocidente, não está nos planos dos aiatolás segregar o Irã do mundo, como uma segunda Coreia do Norte. (Sem falar no aspecto do que os manifestantes iranianos ensinam com suas mensagens instantâneas a outras sociedades oprimidas.)

UMA OUTRA peculiaridade da crise vem de suas origens. A eleição fraudada não foi uma competição entre um adepto e um inimigo do sistema. O oposicionista Mir Hossein Mousavi não se apresentou como um contestador da autocracia, mas como um duro crítico do desastroso governo Ahmadinejad.

MOUSAVI tampouco é um outsider: antigo primeiro-ministro, foi apoiado por setores clericais cautelosamente reformistas, a começar do aiatolá e ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, com ascendência sobre a chamada Assembleia dos Especialistas. Esse colegiado de 86 religiosos escolhe e supervisiona o líder supremo a quem respondem todos os titulares do aparelho estatal - no caso, o aiatolá Ali Khamenei. Ele não só respaldou o seu seguidor Ahmadinejad, como declarou "definitiva" a sua vitória e deu a senha para a repressão ao responsabilizar Mousavi pelo "derramamento de sangue e caos" que viessem a acontecer.

DO EMARANHADO de nexos do estabelecimento religioso com as instituições civis resultam as tensões provavelmente insolúveis que antepõem a lei islâmica absolutista, que deve prevalecer sobre a esfera política, à democracia prometida pela revolução de 1979 - em nome da fé. Essas tensões finalmente explodiram, sob o impulso de uma nova geração para a qual o Islã não tem todas as respostas que as suas aspirações demandam. Uma nova página na história do Irã começou a ser escrita. Terminará ou na tragédia do endurecimento do regime ou em avanço democrático.

EM QUALQUER das hipóteses, a República Islâmica e a sociedade iraniana já não serão as mesmas.

Vida extirpada

O FILME "Jean Charles", do diretor brasileiro radicado na Inglaterra, Henrique Goldman, chegou aos cinemas brasileiros procurando repercussão. A produção foi lançada comercialmente na Sexta-feira, 26, distribuído em salas de Cinema de todo o País, em 153 cópias, um volume que comprova a busca do grande público, apoiando-se também na presença do excelente ator Selton Mello (TV GLOBO), como protagonista da história.

NUMA CO-PRODUÇÃO anglo-brasileira (TELECINE PRODUCTIONS/GLOBOSAT & GLOBOFILMES), o filme procura revelar a identidade do eletricista brasileiro Jean Charles de Menezes (1978-2005) morto pela polícia inglesa em 2005 - um dos mais espantosos erros policiais da história da Grã-Bretanha.

CONFUDIDO com um terrorista, ao final de uma desastrada operação, o jovem eletricista mineiro de 27 anos, radicado em Londres havia três anos, foi executado com oito tiros - sete deles, na cabeça - na estação de Stockwell, no metrô londrino.

TEMPOS depois, comprovou-se que não tinha nenhum vínculo criminoso, ou tivera qualquer comportamento suspeito, como as autoridades britânicas a princípio alegaram, mas foram desmentidas em posteriores investigações.

EXISTE indiscutível fundo político, portanto, por trás do "Jean Charles", que sublinha o clima de histeria vivido em Londres em Julho de 2005 após dois atentados no metrô, com vários mortos e feridos. Mas o foco está, inegavelmente, na figura humana de seu personagem.

ESTÁ claro que o filme não procura uma fidelidade documental absoluta à biografia de Jean Charles - embora procure verossimilhança. O roteiro, assinado pelo diretor do filme, Henrique Goldman, e o jornalista Marcelo Starobinas, cria incidentes ficcionais a partir dos reais. Nem tudo o que se vê na tela é, portanto, a vida de Jean Charles como ela foi, mas tudo que se vê busca coerência com ela.

A ATUACAO do ator Selton Mello confere uma veracidade inegável a esse brasileiro, símbolo de tantos outros, personagens de uma diáspora recente pelo mundo, em Londres em particular.

ESTIMA-SE que cerca de 200.000 brasileiros vivam na Inglaterra, a maioria deles na capital inglesa. Muitos são ilegais, sobrevivendo de todo tipo de trabalho, em busca de um sucesso financeiro e profissional. Por isso, não é raro, para quem anda num ônibus londrino qualquer, ouvir o som de diálogos em português - com sotaques baiano, mineiro, carioca, paulista, pernambucano, Paraíba, capixaba ou gaucho.

O MELHOR do filme está nesse retrato de uma comunidade brasileira exilada, mas que continua ligada na própria língua, na culinária, na televisão nacional (que assiste via cabo), nos artistas. Neste contexto, é particularmente saborosa a participação do cantor cigano Sidney Magal num show para a colônia brasileira londrina. O show evoca, aliás, um incidente real na vida de Jean Charles, mas que envolvia outro cantor, o sambista carioca Zeca Pagodinho.


O GRANDE desafio do filme é que seu herói está condenado à morte e todos sabem disso antes de a primeira imagem atingir a tela. A saída encontrada por Goldman está em deslocar parte do protagonismo da história para outra personagem, a prima de Jean Charles, Vivian - em outra ótima interpretação da bela e jovem atriz Vanessa Giacomo (TV GLOBO). Vivian divide com ele as lutas, as decepções, os sonhos. E cabe a ela levar ou não adiante um dos projetos que Jean Charles deixa pelo caminho.

OUTRO destaque no elenco é o ator Luís Miranda, que interpreta com profunda humanidade outro primo de Jean Charles, Alex - uma pessoa real e entrevistado para a composição do papel. A verdadeira prima do protagonista, Patrícia Armani, aparece em cena em seu próprio papel. No elenco, há uma pequena participação do jovem e talentoso ator mineiro Daniel de Oliveira (TV GLOBO, marido da atriz Vanessa Giacomo.

COM produção executiva do cineasta Stephen Frears ("A Rainha") e de Rebecca O'Brien (produtora de nove filmes do cineasta inglês Ken Loach, como "Ventos da Liberdade") o filme recoloca em discussão o caso de Jean Charles, cuja morte ainda é objeto de ações judiciais por parte de sua família.

QUEM quiser conhecer ou lembrar a inacreditável série de trágicos enganos cometidos por várias unidades policiais inglesas, conduzindo à execução do brasileiro, ainda, pode consultar o rigoroso livro "Em Nome de Sua Majestade", de Ivan Sant'Anna.