Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, novembro 05, 2012

Dívidas estatizadas

RIO DE JANEIRO (RJ) – VEZ por outra, de época em época, os governantes e dirigentes de clubes de futebol no Brasil se articulam para privilegiar os times profissionais do futebol tupiniquim, notórios perdulários que vivem charfundando em dívidas e que, por essa razão, são dependentes contumazes de favores políticos. O caso mais recente foi o projeto de lei encaminhado pelo prefeito municipal da Cidade de São Paulo (SP), Gilberto Kassab (PSD-SP) à Câmara Municipal paulistana para anistiar os débitos de entidades esportivas que utilizam áreas públicas naquele município. O texto, cuja votação foi felizmente suspensa por liminar judicial, beneficiaria nove clubes da Capital paulista, entre os quais o Esporte Clube Corinthians, a Sociedade Esportiva Palmeiras, São Paulo Futebol Clube e a Portuguesa de Desportos, sem a necessidade de contrapartidas financeiras ou sociais.



NA justificativa do projeto, Kassab disse que "o interesse público da propositura é patente", porque os clubes são "verdadeiros espaços de lazer" na cidade. Ora, o "lazer" a que se refere o prefeito municipal é desfrutado não pelos cidadãos paulistanos em geral, mas por quem se dispõe a pagar mensalidades, já que essas entidades, convém lembrar, são privadas. O texto argumenta ainda que alguns dos clubes beneficiados têm "projeção internacional" e "contam com torcedores de seus respectivos times de futebol por todo o território nacional". Segundo Kassab, numa lógica tão tortuosa quanto o esquema tático da seleção brasileira de futebol treinada por Mano Menezes, isso seria suficiente para revelar "o caráter social da manutenção da ocupação das áreas pelos clubes já existentes".



ATÉ 2006, a concessão de áreas públicas a entidades privadas era feita mediante pagamento mensal ou anual à Prefeitura Municipal. Esse aluguel, no caso dos clubes, chegava a 2,5% do valor venal dos imóveis. Mas Kassab, pressionado pelos clubes de Futebol da cidade e por partidos de sua base parlamentar governista na Câmara Municipal, substituiu a cobrança por contrapartidas sociais - que nunca foram prestadas. A manobra levou o Ministério Público Estadual (MPE) a entrar com uma ação contra o prefeito Kassab, em 2011, por dano ao patrimônio público, ao ter deixado de cobrar as dívidas. Para o promotor José Carlos de Freitas, Kassab encaminhou o projeto - que dispensa as contrapartidas sociais e menciona apenas "contrapartidas ambientais ou de sustentabilidade" - para se livrar da condenação, eliminando os débitos que ele deveria ter executado.



OS prejuízos para o Município de São Paulo não são pequenos. Só a Portuguesa de Desportos deve cerca de R$ 13 milhões, segundo o promotor. Além disso, ao regularizar as áreas usadas pelo Palmeiras e pelo São Paulo Futebol Clube na Barra Funda (Região Oeste da Capital paulista), dando-lhes mais 70 anos de concessão, Kassab inviabiliza o uso do terreno para a expansão da área verde daquela Região, previsto pela própria Prefeitura como compensação pelo projeto de adensamento populacional da Operação Urbana Água Branca. O Corinthians, por sua vez, seria beneficiado também porque construiu um estacionamento em local público.



GRAÇAS à confusão entre interesses públicos e privados que cerca a relação entre o futebol e o Estado, não é incomum que os clubes se julguem merecedores de benesses diversas à custa do erário. Não faz muito tempo, João Havelange, ex-presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa) durante 24 anos, declarou que o governo não deveria mais "cobrar imposto disso ou daquilo" dos clubes. Tal renúncia fiscal, afirmou Havelange, seria "um oceano para o clube, mas uma gota d'água para a nação". Talvez movidos por esse espírito, os governos no Brasil sempre se inclinam a socorrer essas entidades esportivas privadas, que gastam fortunas com boleiros e seus treinadores, mas ignoram o recolhimento do que é devido ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), a Receita Federal (RF) e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Provavelmente foi com essa expectativa que dirigentes de Corinthians, São Paulo Futebol Clube e Palmeiras expressaram seu apoio ao prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad (PT-SP). Em troca, como noticiou a reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo em 24 de Outubro último, esperam que a presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS) edite medida provisória que anistie suas dívidas de tributos federais.



AQUI não se questiona a importância do futebol na vida de milhões de brasileiros, razão pela qual os maiores clubes do Brasil devem mesmo ser considerados uma espécie de patrimônio. Mas eles são entidades de direito privado e nada autoriza transformá-los em instituições acima da lei, cujas contas e dívidas sejam pagas com o dinheiro do contribuinte, goste ou não de esporte.