Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, outubro 30, 2005

O fogo brando do impedimento

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que lidera a Oposição, vai manter sua escaramuça com o Partido dos Trabalhadores (PT), mas sua prioridade agora é concentrar os ataques no vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP). Os peessedebistas, que chegaram a apostar no impeachment, decidiram voltar à carga por causa das mais recentes pesquisas. As novas sondagens mostram que a avaliação do governo parou de cair e que Luiz Inácio da Silva lidera as pesquisas de intenções de voto no primeiro turno.

A competição por nichos ecológicos entre as espécies semelhantes é um fenômeno particularmente dramático para os biólogos evolucionistas. A extinção do Australopithecus robustus é especulativamente atribuída por Jared Diamond, em “O terceiro chimpanzé” (1992), a essa disputa por espaço vital com nossos ancestrais, por sua vez descendentes do Australopithecus africanus. Diamond diz: “Com apenas uma espécie humana sobrevivendo, uma plausível suposição é que o ‘homem-macaco robusto’ não pôde mais competir, pois o Homo erectus também se alimentava de carne e vegetais. Melhores instrumentos e maiores cérebros tornaram o Homo erectus mais eficiente, sendo possível até mesmo que tenha empurrado o seu semelhante para o desaparecimento caçando-o para se alimentar”.

Episódio recente dessa feroz disputa ambiental entre semelhantes é a extinção abrupta do homem de Neanderthal, há 40 mil anos. Diamond diz, em “Armas, germes e aço”, que “os modernos Cro-Magnon usaram sua superior tecnologia, suas habilidades lingüísticas, seus cérebros” e, eu adicionaria no espírito do livro, sua maior diversidade genética “para matar, infectar ou deslocar os neanderthais do ambiente ecológico em disputa”.

Esta crescente e feroz disputa entre o PT e o PSDB pelo nicho ecológico dos votos progressistas é o exemplo atual das guerras de extermínio entre espécies semelhantes. Os dois partidos social-democratas lançam acusações recíprocas por corrupção, que já haviam percorrido todo o espectro político em função do excesso de gastos públicos, o molde econômico da corrupção.

O fato de que o PSDB, uma dissidência ética do antido Movimento Democrático Brasileiro (MDB), hoje transmutado em PMDB, e o PT, da bandeira ética da transparência, estejam antecipando a campanha eleitoral do ano que vem à base de acusações de corrupção (programa de desestatização e reeleição contra os peessedebistas; mensalão e delubioduto contra os petistas) é pouco instrutivo aos eleitores por se tratar de uma agenda negativa.

É impossível que os social-democratas, tanto petistas quanto peessedebistas, não percebam a associação entre a formidável expansão de gastos públicos que ambos promoveram e a infecção que ambos contraíram. Ou teria o PSDB concluído pela inevitabilidade das práticas do PMDB de Orestes Quércia (PMDB-SP), Wellington Moreira Franco (PMDB-RJ), Nilo Coelho (PMDB-BA) e Newton Cardoso Mota (PMDB-MG)? E o PT, da mesma forma, concluído pela inevitabilidade das práticas de Paulo Salim Maluf (PP-SP)?

A luta de extermínio poderia ter sido evitada se o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) tivesse estendido a mão ao presidente Luiz Inácio da Silva, poucos meses atrás, em torno de um pacto pela reforma política. A hibridização genética da social-democracia teria fortalecido a espécie e propiciado a instrutiva competição com espécie diferente, como ocorre em todo o mundo.

A Social-democracia, de um lado, e a Liberal-democracia, de outro, poderiam dedicar seu tempo a propor uma agenda positiva, com tecnologias alternativas para alcançar o crescimento, a geração de empregos, atenuar desigualdades, diminuir a criminalidade, em processo altamente educativo para os eleitores.

Enquanto isso não acontece, a guerra entre duas espécies semelhantes será de extermínio, num nicho ecológico em drástico encolhimento, seus eleitores redirecionando os votos, entendendo que nenhum dos dois partidos é capaz de resolver problemas como a corrupção e a estagnação econômica, as duas faces da hipertrofia do Estado Brasileiro. Se PT e PSDB não enxergarem essa realidade, terminarão reduzidos ao nicho eleitoral semelhante ao do Partido Comunista do Brasil (PcdoB).

Mas pelo andar da carruagem eleitoral, senhores passageiros, apertem os cintos porque a turbulência vai continuar. A crise virou rotina e tornou-se crônica. Do jeito que a coisa vai, nem mesmo o acerto de contas entre as duas principais forças políticas marcado para Outubro de 2006 deve zerar o jogo. Sem maioria parlamentar e com uma Oposição nos calcanhares, o eleito, seja quem for, terá enormes dificuldades para governar.

Não adianta: o sistema político entrou em colapso. E assim será enquanto não se conseguir mudar a lógica que contrapõe um presidente da República forte, saído das urnas com milhões de votos, mas sem maioria parlamentar, a um Congresso Nacional eleito na base de práticas clientelistas sem compromissos partidários ou programáticos.

Ninguém governa hoje se não “comprar” sua maioria — e a expressão engloba desde a legítima troca de apoio parlamentar por espaços no governo a métodos mais escusos, que o PT se apoderou rapidamente.
Daqui a 11 meses teremos uma eleição difícil e radicalizada. Luiz Inácio da Silva continua um candidato forte. Os escândalos envolvendo o caixa dois atingiram a Oposição. As perspectivas na economia são razoáveis e o andar de cima, se anda decepcionado com a ética e as ações de governo, está tranqüilo quanto à estabilidade econômica.

Agora, a Oposição vai canalizar na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado – a CPI dos Bingos-, onde têm maioria de nove votos contra seis, as principais ações de ataque ao presidente Luiz Inácio da Silva. A Oposição está determinada a constranger o presidente da República e vai convocar para depor, provavelmente no início do ano que vem, ano eleitoral, Fábio Luiz da Silva, o filho do presidente Luiz Inácio da Silva, para explicar o negócio feito entre a sua empresa Gamecorp e a Telemar; e Genival Inácio da Silva, o Vavá, irmão do presidente da República, para falar sobre suas atividades como lobista e intermediador de verbas federais conforme denúncia comprovada e recentemente divulgada pela revista Veja. De imediato, a Oposição vai convocar os advogados Rogério Buratti e Vladimir Poleto para falar sobre o “ouro de Cuba” (a mais recente denúncia da revista Veja) e convidar para depor o diplomata cubano Sérgio Cervantes, que foi transferido do Brasil no primeiro semestre de 2003. “O PT está liquidado. O PT só sobrevive se o presidente Lula se mantiver vivo”, resume o vice-líder e futuro secretário-geral do PSDB, deputado Eduardo Paes (PSDB-_RJ).

Na rodada de inserções que o PSDB terá na TV e no Rádio, a partir desta Quinta-feira, 03, os peessedebistas atacarão diretamente o presidente Luiz Inácio da Silva. Vão estabelecer um confronto entre suas promessas de campanha e suas realizações no governo (2003-06). Mas vão acima de tudo explorar o escândalo de corrupção na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), nas empresas estatais e o pagamento do mensalão para deputados aliados através do delubiovalerioduto. As pesquisas qualitativas, encomendadas pelos pelos peessedebistas aos institutos de pesquisa e opinião, dizem que é neste ponto que reside a decepção dos eleitores com o governo Luiz Inácio da Silva. Os peessedebistas vão explorar à exaustão a declaração do presidente da República de que ele não sabia de nada. Os governistas também consideram que essa declaração, feita para conter a escalada pelo impeachment, deixou o presidente Luiz Inácio da Silva bastante vulnerável, pois passou à sociedade a imagem de inepto.

O clima é de confronto, pois a linha do combate também foi adotada pelo novo presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (PT-SP). E dirigentes dos dois partidos concordam que, à medida que as eleições presidenciais se aproximarem, a tendência é que aumente a agressividade dos dois lados. Essa belicosidade será um problema a mais para ser administrado por aquele que vencer as eleições presidenciais de 2006. Frase do deputado Cezar Schirmer (PMDB-RS) no julgamento de José Dirceu: “Nós não o estamos punindo por corrupção, mas por ter fraudado os sonhos de mudanças”.

Ao contrário do que ocorreu na CPI dos Bingos, quando o governo trabalhou para que ela não fosse instalada, dando à Oposição maioria, na recém protocolada Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado para investigar a prática de uso de dinheiro não contabilizado em campanhas eleitorais de 1998 a 2004 – a CPI do Caixa Dois -, o governo vai trabalhar para ter maioria.

Enquanto isso o Programa Bolsa Família rende dividendos: pesquisa Datafolha mostra pela primeira vez que a popularidade do presidente Luiz Inácio da Silva junto aos beneficiários dos programas sociais é bem superior à média geral (o índice de bom e ótimo sobe de 28% para 34%). Não se sabe se esse tipo de movimento vai crescer e se espalhar por outros estratos da população, numa espécie de “movimento pedra no lago” ao contrário. Mas dá ao presidente da República a possibilidade de sonhar.

Digamos então que Lula seja reeleito. Sua coligação PT/PSB/PCdoB, ainda que com o apoio de setores do PMDB, não terá, certamente, a maioria do Congresso. Se já não a teve no primeiro mandato, quando saía forte das urnas e o PT tinha a maior bancada, imagine-se agora. Terá que buscá-la para governar. Onde? Na Oposição é que não será. Dispensável citar parceiros e métodos a serem usados. Não há para onde correr. Já vimos esse filme e quem morre no final somos nós, os cidadãos brasileiros.

Vamos então pensar em outro cenário, que poderia, quem sabe, produzir um filme diferente: a vitória de um candidato da Oposição. Digamos que seja José Serra (PSDB-SP) ou Geraldo Alckmin (PSDB-SP), em aliança com o Partido da Frente Liberal (PFL). Ainda que a coligação eleja uma bancada maior do que a do candidato petista, o sistema de voto proporcional uninominal, a ausência da fidelidade e a fragilidade partidária não permitirão também que o novo presidente da República seja eleito com maioria parlamentar. Também terá que recorrer aos penduricalhos de sempre, com os métodos de sempre. De outros, não é preciso nem falar: qual seria a sustentação parlamentar de hipotético presidente Anthony Garotinho (PMDB-RJ), por exemplo?

Agregue-se a isso um clima de acirramento que tende a tornar a Oposição pós-2006, qualquer que seja, um osso duro de roer e o futuro não é nada promissor.

A esta altura, parece que a solução não é mais aquela reforma política que, do jeito que vem sendo negociada, virou moeda de troca para interesses menores. O pacto de salvação possível passaria por uma Assembléia Nacional Constituinte Revisora e Exclusiva para passar a limpo o Regime Presidencialista à brasileira. Mas quem disse que os agentes políticos envolvidos querem mudar?

Bem que o líder do governo no Senado Aloizio Mercadante (PT-SP) tentou. Procurou três caciques da Oposição — os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Agripino Maia (PFL-PI) e Arthur Virgílio Neto (PSDB-AM) — para propor uma trégua. Foi bem recebido. Coincidência ou não, horas depois aprovou-se a Medida Provisória (MP) No. 255, que deu os benefícios tributários da MP do Bem. Mas o clima durou pouco.

Naquele momento, a bola da vez era a Oposição, fragilizada com a confirmação da ligação do senador e ex-governador de Minas Gerais Eduardo Brandão Azeredo (PSDB-MG) com o esquema Marcos Valério. O PT retomou a pancadaria. E tome a pedir a cassação do senador mineiro.

Agora, a partir da denúncia da reportagem da revista Veja sobre o ouro de Cuba, a semana começou com governo e petistas na berlinda. A Oposição voltou a falar em impeachment.

Nem uma coisa nem outra deve acontecer. Não há sequer tempo para um processo desses contra Luiz Inácio da Silva antes da eleição presidencial de 2006. E a cassação de senadores ocorre no Senado Federal, que costuma ser solidário aos seus e não parece sensibilizado com mais esse caso de caixa dois — mesma alegação, aliás, dos que querem processar o presidente Luiz Inácio da Silva. É tudo discurso. Porém, lamentavelmente, a palavra trégua vai ficar de fora nesse embate.