Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Vício do oportunismo

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Pois não é que, depois de uma única experiência, a turma do Cerrado horizontalizou a verticalização? Este nome comprido nasceu de uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2002, naquele ano, presidido pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Nelson Jobim; e somente nas eleições daquele ano foi aplicada. Não existe, portanto, avaliação continuada de seus méritos ou defeitos. O que se viu foi o conjunto dos partidos tomando uma decisão mais pensando nos fins do que nos princípios. O que era conveniente para os grandes partidos políticos em 2002 deixou de sê-lo quatro anos depois.

O TSE determinara que, como os partidos brasileiros são nacionais, só poderiam fazer alianças eleitorais regionais com agremiações a que estivessem aliados no plano federal. Pelo menos em tese, era uma exigência a favor da coerência e da lógica na arena política.

Seria também parte importante da reforma política — embora mereça meditação o argumento de que o carro estaria adiante dos bois: a exigência de uniformidade nas alianças só faria sentido quando as regras do jogo produzissem coerência ideológica dentro dos próprios partidos, levando-os a pactos federais com legendas aparentadas.

Ou seja, ela por si só não tornava o sistema político brasileiro mais coerente e mais honesto. E talvez interessasse defender sua sobrevivência apenas na esperança de que à verticalização se juntassem, fortalecendo-a, outros itens da reforma que a classe política, há anos, declara necessários e urgentes.

Chega a ser engraçado algo ser considerado urgente há muitos anos. Sozinho, qualquer item da reforma política é como isoladas andorinhas: não faz verão. As possíveis virtudes da verticalização talvez só pudessem ser avaliadas corretamente num quadro em que cada partido, no plano federal, fosse devotado, de forma consistente, a princípios e metas programáticos. Isso não existe no Brasil. Só vêm à nossa memória dois partidos que mostravam essa consistência: o velho Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o igualmente falecido Partido Liberal (PL) de Raul Pilla, defensor histórico da adoção do parlamentarismo no Brasil.

Hoje, não há qualquer partido sobre o qual seja possível dizer, a priori , que tomarão esta ou aquela decisão porque assim determina seu programa. No entanto, em geral, apenas diretórios estaduais e municipais são denunciados como infiéis que rezam nos altares da conveniência e aceitam fechar alianças com legendas que adotam cartilhas inteiramente diferentes das suas.

Essa distorção seria evitada, em tese, pela exigência de fidelidade às alianças negociadas no plano federal. Ou seja, pela agora abatida verticalização. Mas quem diz que as alianças federais têm coerência programática? Se não têm — examine-se, a propósito, o casamento Partido dos Trabalhadores (PT)-Partido Liberal (PL) nas últimas eleições — a disciplina vertical obviamente deixa de ser sinônimo de fidelidade a idéias e princípios.

Pode-se sonhar que a reforma política acabará sendo levada a cabo dentro de uns tantos anos: quem viver, verá cada legenda reunindo políticos com idéias essencialmente iguais. Eventualmente, partidos farão alianças eleitorais, coerentemente verticais, com outros que talvez não sejam irmãos, mas pelo menos primos ideológicos.

Contra o sonho há o argumento de que o pragmatismo — ou o oportunismo barato, segundo eleitores impacientes a ponto de dar aos bois seus verdadeiros nomes — sempre será eleitoralmente vantajoso. E por isso sempre prevalecerá.

O vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (2003-6) pediu o fim da verticalização e 77% da sua bancada votaram contra a sua orientação. A bancada do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) votou inteiramente rachado. O ex-presidente do TSE discordou da decisão do Congresso Nacional; o futuro presidente é a favor. O assunto divide. Cientistas políticos ouvidos por este jornalista que vos escreve acham que a verticalização é ruim e desrespeita a realidade do País.

Grande dos colegas da Imprensa especializada tratou a verticalização como uma medida moralizadora, que daria coerência ideológica às chapas; portanto, condenou a votação do Congresso na semana passada como um voto a favor da bagunça. Vários cientistas políticos, porém, discordam inteiramente dessa visão. “Há um vício de origem na verticalização. Ela não foi votada pelo Congresso em 2002, ela foi imposta por uma decisão do ministro Nelson Jobim, atendendo a uma consulta do deputado Miro Teixeira e isso poucos meses antes da eleição“, lembra Fabiano Santos, sociólogo e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). “Eu não vejo problema algum no fim da verticalização, não acho que era uma medida para acabar com a ‘bagunça’. Os políticos têm vários tipos de interesse legítimos, eles são eleitos por votos locais; é natural que queiram se organizar da forma mais conveniente. Numa democracia, é natural que os políticos façam cálculos de que alianças devem fazer para serem eleitos”, diz a cientista política Argelina Figueiredo.

A decisão do Congresso Nacional, que abriu a possibilidade de que as alianças políticas sejam diferentes nos estados do que são na instância federal, foi vista como mais uma lambança dos políticos. Seria uma regra que nos afastaria ainda mais do caminho certo na política.

Os especialistas no tema acham que julgar a verticalização com essa visão moralista é um erro. O Brasil é uma federação, repetem. Parece a declaração do óbvio, mas o País, com sua tendência centralizadora, tem que ser sempre lembrado de que é uma república federativa, e que isso pressupõe liberdade dos estados para legislar e decidir sobre inúmeras questões.

Figueiredo acha que é “ranço autoritário” querer impor coerência ideológica por decreto. Além do mais, a última eleição, feita sob a obrigatoriedade de ter as mesmas alianças nas disputas federal e estaduais, não criou essa coerência. Que afinidade ideológica pode haver entre o PL e o PT, por exemplo?

Santos acha que a crítica ao fim da verticalização tem um erro elementar: “ela está conceitualmente errada. Os partidos são nacionais, mas existem subsistemas partidários nos estados. Nos estados, os mesmos partidos seguem outra dinâmica, pelo caráter federativo do País”, explica ele.

Mas o eleitor não se confunde? Santos acredita que não: “o eleitor brasileiro sempre soube separar seus interesses locais dos federais. Na eleição de 2002, o Brasil deu um mandato ao PT para governar o Brasil e deu grande parte dos estados ao PSDB e ao PMDB. Ele pensou assim: tem muito desemprego, desigualdades, eu quero que o presidente Luiz Inácio da Silva (PT-SP) governe o País; em São Paulo, o governo está ajustando as contas, organizando o estado, eu vou reeleger o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP). Sempre foi assim, na História do Brasil. A verticalização não federaliza a eleição estadual, há o risco de que paroquialize a eleição federal”.

A paisagem da federação dá razão aos cientistas políticos. O PT e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) poderiam até se entender na disputa federal, mas, no Rio Grande do Sul, os dois partidos são forças políticas polares; na Bahia, o PSDB se distancia do Partido da Frente Liberal (PFL), que é carlista (controlado pelo senador Antonio Carlos Magalhães nas praias de Nosso Senhor do Bonfim e no agreste baiano), ainda que ambos tenham estado trabalhando juntos no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002); lá os peessedebistas se aliam mais ao Partido Comunista do Brasil (PcdoB), viúvo do antigo PCB. Aqui, Minas Gerais está num momento bem diferente em que a relação PT e PSDB parece extraordinariamente harmoniosa. Minas Gerais parece seguir um projeto político próprio e para mais tarde. Na eleição municipal, os dois partidos, inimigos na área federal, não se enfrentaram. Ambos, o governador do estado Aécio Neves da Cunha (PSDB-MG) e o prefeito de Belo Horizonte (MG) Fernando Pimentel (PT-MG), estão muito bem avaliados em seu desempenho administrativo. Há vários arranjos locais inteiramente diferentes do arranjo federal e isso não é natural num País grande, heterogêneo e federativo.

A natureza política do Brasil nunca foi muito bem entendida. Tanto nos momentos de regime de exceção quanto na democracia. Na ditadura militar (1964-85), houve a imposição do bipartidarismo e criou-se a sublegenda; na democracia, há decisões como esta, de obrigar alianças semelhantes em todos os níveis da disputa e a medida não cola.

Critica-se o País por ter leis que não pegam, é porque são leis irreais. Leis sensatas pegam. A verticalização é vista até hoje por muita gente como medida moralizadora. Basta lembrar-se daquela reunião entre os candidatos Luiz Inácio da Silva e José Alencar Gomes da Silva (PRB-MG), em que o PT se comprometeu a entregar R$ 10 bilhões ao PL (antiga filiação do vice-presidente da República) para financiar as eleições, segundo o relato do presidente daquela legenda Valdemar Costa Neto (PL-SP). Aquela reunião ocorreu na vigência da verticalização.

Mas eu acho que, em vez de pensar numa reforma política ampla, é preciso tomar decisões de engenharia política que produzam o efeito que se busca. Sobre a corrupção, acho que o melhor a fazer é aumentar a fiscalização e a transparência das contas de campanha. O financiamento público não vai impedir a prática o caixa dois nas campanhas eleitorais . O voto em lista não acabará com o caciquismo, aumenta sua força.

O Brasil tem vários problemas políticos, mas tem uma tendência de correr atrás de falsas soluções. (WAPJ)