Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, maio 03, 2012

A pobreza tem cor? Discriminação institucionalizada no Brasil!


NOSSA discriminação racial é constitucional, segundo decidiram por unanimidade os ministros do Supremo Tribunal (STF), num julgamento sobre a adoção de cotas para negros e pardos nas Universidades Públicas. Com base numa notável mistura de argumentos verdadeiros e falsos, os ministros do STF aprovaram a reserva de vagas para estudantes selecionados com base na cor da pele ou, mais precisamente, na cor ou origem étnica declarada pelo interessado. Mesmo enfeitada com rótulos politicamente corretos e apresentada como "correção de desigualdades sociais", essa decisão é obviamente discriminatória e converte a raça em critério de ação governamental. Para os juízes, a desigualdade mais importante é a racial, não a econômica, embora os magistrados mal distingam uma da outra.

O MINISTRO Cezar Peluso mencionou as diferenças de oportunidades oferecidas a diferentes grupos de estudantes. Com isso, chamou a atenção para um dos maiores obstáculos à concretização dos ideais de justiça. Todos os ministros, de alguma forma, tocaram nesse ponto ou dele se aproximaram. Estabeleceram, portanto, uma premissa relevante para o debate sobre a formação de uma sociedade justa e compatível com os valores da democracia liberal, mas perderam-se ao formular as conclusões.

O MINISTRO Joaquim Barbosa referiu-se à política de cotas nas Universidades como forma de combater "a discriminação de fato", "absolutamente enraizada", segundo ele, na sociedade. Mas como se manifesta a discriminação? Candidatos são reprovados no concurso vestibular por causa da cor? E os barrados em etapas escolares anteriores? Também foram vítimas de racismo?

A MINISTRA Rosa Weber foi além: “a disparidade racial", disse ela, "é flagrante na sociedade brasileira. A pobreza tem cor no Brasil: negra, mestiça, amarela", acrescentou. A intrigante referência à cor amarela poderia valer uma discussão, mas o ponto essencial é outro. Só essas cores identificam a pobreza no Brasil? Não há pobres de coloração diferente? Ou a ministra tem dificuldades com a correspondência de conjuntos ou ela considera desimportante a pobreza não-negra, não-mestiça e não-amarela.
PORÉM seus problemas lógicos são mais amplos. Depois de estabelecer uma correspondência entre cor e pobreza, ela mesma desqualificou a diferença econômica como fator relevante. "Se os negros não chegam à universidade, por óbvio não compartilham com igualdade das mesmas chances dos brancos". E concluiu: "Não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico". A afirmação seria mais digna de consideração se fosse acompanhada de algum argumento. Mas não é. O fator não econômico e estritamente racial nunca foi esclarecido na exposição da ministra nem nos votos de seus colegas.

NENHUM deles mostrou com suficiente clareza como se manifesta a discriminação no acesso à Universidade ou, mais geralmente, no acesso à educação. O ministro Celso de Mello citou sua experiência numa escola pública norte-americana sujeita à segregação. Lembrou também a separação racial nos ônibus escolares nos Estados Unidos da América (EUA) até os anos 1960. Seria um argumento esclarecedor se esse tipo de segregação - especificamente racial - fosse no Brasil tão normal e decisivo quanto o foi nos EUA.

TALVEZ haja bons argumentos a favor da discriminação politicamente correta defendida pelos ministros do STF, mas nenhum desses foi apresentado. Brancos pobres também têm dificuldade de acesso à Universidade, mas seu problema foi menosprezado.

UMA vez que um negro ou pardo com nota insuficiente é considerado capaz de cursar com proveito uma escola de ensino superior, a mesma hipótese deveria valer para qualquer outro estudante. Mas não vale. Talvez esse branco pobre também deva pagar pelos "danos pretéritos perpetrados por nossos antepassados". Justíssimo?

COMO suas excelências poderão ser envolvidas em outras questões de política educacional, talvez devam dar uma espiada nos censos. Os funis mais importantes e socialmente mais danosos não estão na Universidade, mas nos níveis Fundamental e Médio. Países emergentes bem-sucedidos na redução de desigualdades deram atenção prioritária a esse problema. O resto é demagogia.
PORTANTO, a aprovação das cotas raciais pelo plenário do STF encerra apenas do ponto de vista institucional a discussão sobre a reserva de vagas para estudantes negros na Universidade. Ficam em aberto, no entanto, outras questões que não podem ser resolvidas pelo viés próprio de decisões como a tomada pela Corte semana passada. Uma delas é que se deixou espetada na conta do branco pobre a fatura da suposta “dívida histórica” da sociedade brasileira com os negros, que a brigada racialista invariavelmente antepõe como pressuposto da defesa de suas ideias. De resto, é discutível o alcance desse resgate de “dívida” social, num país que patrocinou uma odiosa escravidão, fato inquestionável, mas cuja história registra casos de ex-escravos que, libertos e tendo ascendido socialmente, passaram também eles a ser donos de escravos. Alguns foram negociantes no ramo.

OUTRA questão, de alcance mais amplo, é que se relega a segundo plano, em nome do alegado problema da discriminação de que seriam vítimas os estudantes negros brasileiros, a questão-chave, a mãe de todas as ações afirmativas, na qual se inserem as cotas: a melhoria do Ensino Básico público.

ESTE, sim, seria o ponto de inflexão da educação no país. Enfrentá-lo com iniciativas que de fato deem condições a estudantes pobres, independentemente da cor da pele, de pleitear seu direito à ascensão social baseada num ensino de boa qualidade seria contundente demonstração de justiça social.

ESSA visão, mais de acordo com a realidade social do País, baseia-se numa constatação: não é em razão da cor da pele que decorrem as baixas taxas de acesso do estudante negro à universidade. Este inegável e vergonhoso indicador é resultado das poucas oportunidades que o ensino público de base oferece ao estudante pobre, em geral, de se instruir, e, por conseguinte, de disputar vagas — nas faculdades e no mercado de trabalho — em igualdade de condições com aqueles mais bem qualificados.

O NEGRO tem presença rarefeita na universidade não por ser negro, mas por ser pobre.

OUTRA questão a ser discutida é o modelo sobre o qual se alicerçou todo o movimento pela instituição das cotas raciais no Brasil. A referência direta é o sistema norte-americano. Ao importar a réplica dos EUA, o movimento cotista eclipsou aspectos que distinguem a sociedade americana da brasileira. Relevou-se, por exemplo, o pressuposto histórico de que, lá, a sociedade se constituiu sobre “raças”, ao passo que no Brasil consagra-se o princípio da miscigenação. Aqui, o risco é de o País ficar suscetível a tensões até agora inexistentes.

ADEMAIS, enquanto a sentença do STF implica a adoção de um percentual rígido de reserva de vagas nas Universidades, a Suprema Corte norte-americana estabeleceu um conjunto de fatores baseados no nível social do candidato, que obrigatoriamente devem ser levados em conta como critérios para a aplicação das cotas. Esse princípio, de certa maneira, dilui o caráter racialista do sistema.

TAL decisão do STF, por óbvio, tem de ser respeitada, sob pena de se arranhar o protocolo do estado de direito. Mas é uma posição que não invalida — antes, a torna inadiável — a tarefa de se buscar, para todos, a democratização da educação, pela radical melhoria do Ensino Público Básico.