Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, julho 05, 2011

Caindo na real

ABANDONANDO o bom senso e todos os sinais de alerta, no final de Junho, o governo Dilma Rousseff (2011-14) decidiu investir sua reputação - e não só dinheiro público - na fusão das redes varejistas Pão de Açúcar e Carrefour, um negócio polêmico, legalmente arriscado, potencialmente nocivo a consumidores e fornecedores e inteiramente estranho à missão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Apesar de seu empenho, nenhuma autoridade conseguiu justificar a participação do Poder Executivo brasileiro nessa aventura nem dissipar os temores diante da ameaça de maior concentração de poder no mercado de alimentos e de outros bens essenciais. Ao contrário: ao tentar defender o indefensável, as autoridades se arriscam cada vez mais num terreno política e moralmente pantanoso.

NÃO se usará recurso público nessa operação, limitou-se a dizer a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Gleisi Hoffmann (PT-PR). Segundo ela, o dinheiro será investido pelo DNDES Participações (BNDESPar S/A), numa transação de mercado. Mas todo o recurso usado pelo sistema BNDES - para empréstimo ou para investimento - é público, venha do Tesouro Nacional, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), de fontes internacionais ou do lucro de suas operações. O BNDES é um banco público, sem acionistas privados, e esse é o status também do BNDESPar S/A. A advogada Gleisi Hoffmann, ex-diretora financeira da Itaipu Binacional e especialista em gestão pública, certamente conhece esses dados, mas parece havê-los esquecido.

O MINISTRO de Estado do Desenvolvimento da Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel (PT-MG), presidente do Conselho de Administração do BNDES, foi igualmente infeliz ao defender a fusão e a possível participação do banco nacional de fomento. A associação entre o Pão de Açúcar e o Carrefour "abrirá uma porta importantíssima para a colocação de produtos brasileiros industrializados no mundo inteiro", afirmou. Segundo Pimentel, seria esse o grande interesse estratégico da operação. A alegação é constrangedoramente ridícula.

O GRUPO Pão de Açúcar já é associado a um grupo francês, o Grupo Casino. Produtos com a marca desse grupo são vendidos na rede brasileira. O comércio tem funcionado na mão inversa? O Carrefour poderá oferecer melhores perspectivas para esse intercâmbio? O ministro Pimentel passou longe desses detalhes, e isso é compreensível, porque o comércio do Brasil com a França e com outros países da União Europeia (UE) envolve questões muito mais complexas. Não é esse o ponto.

PIMENTEL escorregou feio, também, ao criticar os bancos privados por deixarem de ajudar a fusão. Segundo seu raciocínio, o BNDES apenas cumprirá, como sócio do empreendimento, um papel negligenciado pelas instituições privadas. Esse argumento pode valer para os financiamentos de longo prazo destinados a programas de investimento e até, em casos muito limitados, para aplicações de risco. Não serve, porém, para certas operações desenvolvidas pelo BNDES nos últimos anos. Essas operações incluem a ajuda a grandes empresas capazes de levantar dinheiro no mercado interno e externo, o apoio a grupos selecionados para papéis (politiqueiros) "estratégicos" (mas não estratégicos de fato para o País) e o socorro generoso a grandes empresários em apuros.

PARA completar, lembremos do inevitável: não é função do governo - e isto inclui o BNDES - cuidar dos interesses do empresário paulistano Abílio Diniz em suas disputas com os dirigentes do Grupo Casino. Esse é um assunto estritamente privado e é um abuso tentar travesti-lo como questão de interesse nacional. O interesse nacional está relacionado a outro ponto - a preservação de condições sadias de concorrência num segmento de grande relevância para o bem-estar da maior parte da população. Será preciso pensar especialmente naquelas áreas onde Pão de Açúcar e Carrefour já têm uma grande participação no varejo.

TODA ação do governo Rousseff em relação a esse caso - por meio do BNDES, do sistema de defesa da concorrência e de outras instituições, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) - será acompanhada com muito interesse dentro e fora do País. O governo estará numa vitrine, até por causa da presença do empresário Abílio Diniz num órgão ligado à Presidência, a Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade, e de seus vínculos com a presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS), e seu antecessor (2003-10), Luiz Inácio da Silva (PT-SP)

CONTUDO, após elogiar enfaticamente o projeto de fusão entre o Pão de Açúcar e o Carrefour, dona Rousseff parece que decidiu ser mais cautelosa nas manifestações de apoio ao negócio. A presidente da República e seus assessores parece haver percebido mais claramente o perigo de se envolver numa transação desse tipo - sujeita à disputa judicial e à contestação pelos órgãos de defesa da concorrência. Está em jogo muito mais que os R$ 3,9 bilhões da possível participação do BNDES nessa operação. Um erro de avaliação poderá lançar o governo em sérias dificuldades legais e impor um alto custo político à presidente.

ESSA tardia decisão de agir com maior prudência está claramente refletida em uma "nota de esclarecimento" publicada pelo BNDES. A nota enfatiza dois pontos: 1) a fusão deve ocorrer por meio de uma oferta "não hostil" e ser aprovada por todas as partes envolvidas; 2) o banco "reitera seu compromisso com a estrita observância das leis e dos contratos". Em outras palavras, o BNDES condiciona sua participação no negócio a um prévio entendimento entre o empresário Abilio Diniz e o Grupo Casino, seu atual sócio francês no Grupo Pão de Açúcar. Dirigentes do Casino acusam Diniz de violar o acordo de associação e de agir ilegalmente ao negociar a fusão com o Carrefour. A segunda condição mencionada no texto da nota do BNDES é uma alusão a este conflito. Segundo o Grupo Casino, o sócio brasileiro fere uma regra estabelecida na constituição da Wilkes, a holding controladora do Grupo Pão de Açúcar. Nenhuma das partes, alegam os sócios franceses, poderia negociar um acordo com potencial para afetar o controle da companhia brasileira. Advogados do grupo francês levaram tal lembrete ao BNDES.

O BNDES havia divulgado há uma semana um primeiro comunicado sobre seu possível envolvimento na fusão. Segundo o informe, o BNDES havia enquadrado para análise uma operação equivalente a até 2 bilhões, "relativa ao projeto de internacionalização do Grupo Pão de Açúcar". No fim do comunicado havia apenas uma breve referência aos demais participantes: "A operação também deverá ser aprovada pelas demais companhias envolvidas". Apenas dois dias depois a diretoria do banco achou conveniente divulgar a "nota de esclarecimento", para afirmar seu cuidado com "a estrita observância das leis e dos contratos".

DIRETORES do BNDES e autoridades do primeiro escalão do Poder Executivo cometeram indisfarçável imprudência ao apoiar a fusão do Grupo Pão de Açúcar com o Grupo Carrefour. Deixaram-se envolver antes de avaliar com um mínimo de serenidade e bom senso as implicações do negócio. Como não dispunham de argumentos sensatos para defender a operação, expuseram-se ao ridículo com alegações absurdas e tolas.

RESTA agora saber se o governo decidiu fazer apenas um recuo tático, diante da péssima repercussão do negócio, ou se passará de fato a avaliar com mais cuidado o seu envolvimento na fusão dos dois gigantes do varejo. Nenhuma autoridade precisará de muito esforço para perceber as contraindicações: nada justifica o envolvimento do poder público num negócio tipicamente privado e sujeito a importantes complicações legais. Menos ainda se justifica a intromissão da Presidência da República, por meio de um banco público, para defender os interesses estritamente particulares de um empresário brasileiro.

MAS dona Rousseff deveria aproveitar a oportunidade para uma revisão geral dos critérios seguidos pelo BNDES nos últimos anos. O banco tomou rumo perigoso, aplicando somas enormes em empreendimentos sem real valor estratégico para o Brasil, apoiando empresas estatais e outras grandes empresas capazes de levantar financiamentos no mercado e funcionando como instrumento de centralização do poder econômico. As melhores e mais ambiciosas intenções da presidente Rousseff jamais serão satisfeitas com essa política.