Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, novembro 02, 2005

Duas cabeças e uma sentença

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

A denúncia da revista Veja, esta semana, de que dinheiro de Cuba financiou o caixa dois da campanha do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2002 é verossímil, embora muita coisa não faça sentido na reportagem. Não faz sentido, por exemplo, que o ex-prefeito de Ribeirão Preto e ministro de Estado da Fazenda Antonio Palocci Filho (PT-SP), então coordenador da campanha presidencial, fosse pedir conselhos a seu ex-assessor Rogério Buratti sobre como internar os milhões de dólares que Cuba estaria colocando à disposição do PT.

Tanto o governo de Cuba quanto Palocci saberiam como colocar esse dinheiro aqui ou em qualquer outro lugar do planeta. O conselho de Buratti — “através de doleiro” — parece ridículo, por óbvio. Também não é crível que o principal representante político de Cuba no país, o diplomata Sérgio Cervantes, fosse entregar pessoalmente esse tipo de dinheiro em seu apartamento em Brasília (DF). E soa um tanto quanto rocambolesca a idéia de dólares de Cuba vindo embalados em caixas de rum e uísque.

Antes de assumir essas denúncias, a Oposição tem que escolher: ou o PT tem uma conta em paraísos fiscais através da qual pagou no exterior serviços como os do marqueteiro Duda Mendonça, ou, nesses tempos de alta tecnologia, recebe dólares por meios completamente anacrônicos e rocambolescos. Outro problema grave da reportagem de Veja é que, mais uma vez, a única pessoa que viu o dinheiro é o falecido advogado Ralf Barquete, ex-secretario de Palocci Filho. As duas testemunhas ouvidas por Veja, e que confirmam a história diretamente, não viram o dinheiro, simplesmente ouviram falar dele.

Mas não há dúvida de que a reportagem está detalhadamente apurada, e nenhuma das ressalvas feitas acima livra o governo e o PT da obrigação de explicarem as denúncias, que são verossímeis e combinam com outras denúncias de dinheiro estrangeiro nas campanhas do PT. Ademais parece que Veja está preparando uma longa “suíte” do assunto que deverá ser publicada na sua próxima edição: “O ouro de Cuba – parte 2”.

De antemão sabe-se, por exemplo, que a campanha de um deputado federal de São Paulo em 2002 foi irrigada pelo dinheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o que causou até desentendimentos na direção nacional do partido, que fez uma reclamação formal ao comando das Farc. Não para que parassem de enviar dinheiro, mas para que o fizessem através dos canais competentes do PT, e não individualmente para os candidatos que escolhessem.

A contribuição das Farc para a campanha petista de 2002, aliás, já foi motivo de uma investigação da Agência Brasileira de Informações (Abin) no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Ao contrário do que acusam os petistas, o governo peessedebista tratou as denúncias com benevolência e arquivou-as, para que não fosse acusado de estar interferindo na campanha presidencial em curso naquele momento.

O padre Olivério Medina, que está preso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e pode ser extraditado a pedido do governo da Colômbia, de acordo com informes da Abin publicados pela revista Veja, foi quem teria feito o anúncio, num churrasco em um sítio nos arredores de Brasília (DF), de que as Farc ajudariam com US$ 5 milhões a campanha do PT.

Anteriormente, já havia denúncias de que dinheiro da Líbia de Muamar Khadafi, de organizações internacionais, especialmente alemãs, e da Organização para Libertação da Palestina (OLP) irrigava os cofres petistas. A relação do PT com diversas organizações de esquerda, clandestinas ou não, sempre foi muito próxima, a tal ponto que quando foi eleito o presidente Luiz Inácio da Silva (PT-SP) mandou ninguém menos que seu então principal ministro, o chefe da Casa Civil José Dirceu (PT-SP), para uma conversa oficial com o presidente da República da Colômbia. O recado foi de que as relações do PT com as Farc eram partidárias, e não representavam as posições oficiais do governo que acabara de se eleger.

E há ainda a denúncia da ex-mulher do ex-deputado Valdemar da Costa Neto (PL-SP), de que o governo de Taiwan entregou a ele milhões de dólares para serem repassados para a campanha petista. Convenhamos, são muitos os precedentes históricos e os indícios para que nada disso seja verdade.

O pior para o PT é que até agora todas as denúncias foram sendo comprovadas, uma a uma. Por isso, é risível quando o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (PT-SP), nega a denúncia de uso de dinheiro cubano alegando que a prestação de contas do PT está registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ou quando algum petista diz que o partido não cometeria uma infantilidade como essa, sabendo que a legislação eleitoral proíbe terminantemente esse tipo de financiamento estrangeiro. Ora, a legislação também proíbe o uso do caixa dois, e o próprio presidente da República Luiz Inácio da Silva (2003-6) pronuncia-se oficialmente sobre o assunto para justificar seu partido, alegando que essa é uma prática corriqueira entre os partidos políticos.

Embora todo esse contexto faça com que a luta política fique a cada dia mais acirrada, é pouco provável que o pedido de impeachment do presidente da República, se vier a ser feito pela Oposição com base no financiamento ilegal da campanha, seja mais do que uma arma política para a Oposição, sem conseqüências concretas. O uso de caixa dois na campanha presidencial não autoriza processo de impeachment, pois se Luiz Inácio da Silva na época da campanha eleitoral ainda não era presidente, não poderia praticar crime de responsabilidade.

O artigo 86 da Constituição brasileira determina que “o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. Assim, qualquer irregularidade cometida durante a campanha só poderá provocar um processo criminal contra Luiz Inácio da Silva depois do fim de seu mandato.

Isto quer dizer que um processo de impeachment só poderá ter validade se baseado nos atos praticados durante o exercício da Presidência da República. Por exemplo, se ficar provada a participação do presidente Luiz Inácio da Silva na compra de votos de congressistas e na distribuição do mensalão. Mas, mesmo que as denúncias de recebimento de dinheiro do estrangeiro não tenham como conseqüência a perda do mandato presidencial, o estrago político já está feito.

O presidente da República dos Estados Unidos da América George W. Bush, que desembarca no Brasil nesta Quinta-feira, 03, para uma visita relâmpago, enfrenta em casa o mesmo problema que inferniza o presidente Luiz Inácio da Silva. Uma pesquisa do Washington Post Journal mostrou que há três vezes mais norte-americanos convencidos de que o nível de honestidade e ética caiu no governo Bush do que os que acham que subiu; 55% também acham que os problemas da semana passada, que levaram ao indiciamento do assessor do vice-presidente República Dick Cheney, vão se ampliar.

Talvez um cidadão norte-americano bem informado se sinta tão perdido no nosso delubiovalerioduto como qualquer brasileiro bem informado se perdeu, desde o início, no Plamegate. A primeira dificuldade aqui é entender o caso em si da agente da CIA denunciada por assessores diretos do presidente Bush e do vice-presidente Cheney. A segunda dificuldade é a escala de valores: é considerado um supercrime revelar quem é da CIA, mas não parece ser igualmente condenável mentir sobre os motivos de uma guerra e mandar dois mil norte-americanos para a morte.

Da nossa perspectiva, claro, o que deveria estar sendo investigado implacavelmente é o fato de que Bush disse que havia armas de destruição em massa no Iraque, iniciou uma guerra que ainda não acabou, e as armas nunca foram encontradas.

A ligação entre os dois casos é a seguinte: o embaixador Joseph Wilson foi mandado a Níger para investigar a suspeita de que o Iraque estava comprando urânio para fabricar armas de destruição em massa. Escreveu um relatório concluindo que não havia provas do fato. Bush disse à Nação o oposto: garantiu que havia provas de armas de destruição em massa no Iraque. O embaixador escreveu um artigo publicado pelo jornal The New York Times (NYT) criticando Bush por isso. Então surgiu na Imprensa que a mulher do embaixador, Valerie Plame, era agente secreta da CIA.

Quem revelou a condição de Plame para a Imprensa? Entrou em ação o procurador Patrick J. Fitzgerald para descobrir a resposta. Semana passada ele indiciou Lewis Libby, chefe do gabinete de Cheney. Libby se demitiu e pode pegar 30 anos de prisão.

Há uma coisa para explicar antes, para se entender o caso: revelar a identidade de agente da CIA é crime contra a segurança nacional norte-americana. Do nosso ponto de vista, o que deveria ser investigado no gabinete de Cheney são os abundantes indícios de que a Halliburton, empresa em que o vice-presidente trabalhou, foi favorecida em vários contratos federais, principalmente na reconstrução do Iraque. Mas o governo dos Estados Unidos da América (EUA) submeteu governos de outros países ao seu comando, desestabilizaram governos infiéis e sempre usaram a sua agência de inteligência como ferramenta de obter informação e, assim, melhor controlar o mundo. Portanto: a identidade dos agentes é questão de segurança nacional.

Há outros pontos obscuros no Plamegate. A notícia de que Valerie Plame era agente da CIA foi divulgada pelo jornalista Robert Novak do jornal Chicago Sun Times. Nada aconteceu com ele, que deu o “furo”. O promotor Fitz-Gerald, elogiadíssimo por estar sendo implacável nesse caso, preferiu ir para cima de dois outros jornalistas que fizeram “suítes” no caso. Um da revista Time e outra do jornal NYT. Exigiu que eles dissessem a fonte. O repórter da revista Time entregou Karl Rove, principal assessor político do presidente Bush. Mas ele não foi indiciado ainda.

A repórter do NYT Judith Miller disse que não revelaria a fonte. A propósito: ela nunca escreveu que Plame era da CIA, estava apenas investigando. Foi para a cadeia. Ficou lá 85 dias. Mesmo assim, jornalistas norte-americanos não acham que ela é heroína da primeira emenda constitucional norte-americana (a que dá direito aos jornalistas de esconderam suas fontes). Acham que ela é uma figura controversa. Em artigos anteriores ela garantiu que o Iraque tinha armas de destruição em massa, divulgou a versão do Pentágono. Depois da temporada na prisão, ela foi liberada por sua fonte a dizer o nome. A fonte era Lewis Libby, que foi indiciado. Também, nos EUA, a pressão sobre os jornalistas é um grave precedente.

Perguntas e perguntas. Por que Novak não foi intimado a dizer quem lhe deu a notícia, e sim dois jornalistas, um dos quais nem escrevera ainda sobre o tema? Por que Rove ainda não foi indiciado? Por que a questão principal não é o fato de que Bush leu um relatório dizendo que não havia provas de que Saddam Hussein comprara urânio na África e, mesmo assim, afirmou que havia provas?

As dúvidas do escândalo Clinton-Levinsk eram prosaicas, mas mais fáceis de entender. Ele fez ou não sexo com a estagiária da Casa Branca? Certos entrementes são sexo ou não? Aquele vestido guardado com DNA do ex-presidente Bill Clinton (1993-2001) provava o que exatamente? Todas as perguntas eram relevantes porque poderiam comprovar um crime inaceitável: não o chifre em Hillary Clinton, mas se o presidente da República mentira ao país ou não.

No caso atual já se começa sabendo que o presidente Bush mentiu. E que o custo da mentira foi muito mais ornamental, digamos, do que a que teria sido dita por Clinton. O mais importante é que esse caso se soma a outras frentes de desgaste que Bush enfrenta, como o de corrupção eleitoral do seu ex-líder no Congresso, a queda da popularidade, os furacões, a indicação errada para a Suprema Corte, o cansaço norte-americano com a guerra do Iraque.

Se quiserem quebrar o protocolo, Luz Inácio da Silva e George W. Bush terão muito que conversar sobre como sair do inferno astral.

Mas, em alguma coisa eles são bastante parecidos: na ausência de paixão pelos livros, pela informação impressa em geral — e tudo mais que essa paixão implica, em termos de bagagem cultural. É triste constatação, e fazê-la pode parecer preconceituoso. Mas ajuda a entender variadas atitudes e decisões dos presidentes do Brasil e dos EUA.

Nossa receita de bom governo não fala numa autocracia de sábios, escolhidos sabe-se lá como, e sim em escolha popular. A idéia é que o povo, em geral, acerta. Às vezes, erra. Está nas regras do jogo, e não se conhece alternativa melhor que a democracia. Porém, ao menos supostamente, o perfil do governante eficiente inclui uma dose mínima de cultura e de informação sobre o mundo.

Essa exigência cria problemas para Bush. Ele chefia o governo mais poderoso do planeta - e acha que os habitantes da Grécia são grecianos. E não acredita na teoria da evolução das espécies.

Bush está no poder há quase 250 semanas e, sem preconceito nem exagero, faz uma bobagem atrás da outra. No momento, enfrenta uma tragédia político-militar no Iraque e uma série de derrotas domésticas. Não conseguiu nomear sua escolhida para a Suprema Corte, e um auxiliar importante teve de se demitir depois de indiciado por perjúrio e falso testemunho. E mais vem por aí.

O sistema político norte-americano praticamente impõe uma queda de prestígio do presidente da República no segundo e último mandato de quatro anos. Bush enfrenta essa fatalidade — mas com um índice precoce de desprestígio raramente registrado.

O presidente Luiz Inácio da Silva, embora com menos intensidade do que se pensava, está em situação de desprestígio análoga. Seus problemas políticos podem nada ter a ver diretamente com os limites estreitos de sua visão de mundo. Mas alguma relação de causa e efeito tem de existir. Alguém deveria tentar convencê-lo de que a espontaneidade dos improvisos não compensa a falta de informação sobre os problemas — e esta é que limita a eficiência de sua administração. Se quiserem, a aparência de eficiência.
Não é de estranhar, pensando bem, que a síndrome do segundo mandato tenha caído sobre sua cabeça um ano antes de se acabar o primeiro. Nos EUA, analistas respeitáveis afirmam que Bush é teimoso: continuará ladeira abaixo e dificilmente fará o sucessor. Para nós, não é necessariamente uma má notícia. No Brasil, os analistas e marqueteiros eleitorais dizem que o presidente Luiz Inácio da Silva tem ainda boas chances de reeleição em 2006. Sendo verdade, está na hora de especular sobre o que ele imagina que será um segundo mandato. Uma chance de pensar forma e estilo de governar? O que, curto e grosso, exige mais capricho no serviço? Mais estudo dos problemas e menos palavrório emocional? Ou ele verá na reeleição uma prova de que o povo acha que do jeito que está já é bom demais?