Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, setembro 03, 2006

Recall dos miseráveis

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
OURO PRETO (MG)


Temos uma lei que rege o Programa Bolsa Família. Enviada ao Congresso Nacional como Medida Provisória (MP) da Presidência da República em 2003, a Lei foi aprovada pelo parlamento e sancionada pelo vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) em janeiro de 2004. Pois bem a Lei é muito clara: os beneficiários devem ter uma renda familiar per capita de até R$ 120. A mesma Lei diz que os beneficiários só podem receber o dinheiro se mantiverem os filhos matriculados e freqüentes na escola e se estiverem em dia com os programas de saúde do governo – as tais condicionalidades. Mas, em nesse País, vigora um estranho estado de coisas: as leis devem ser seguidas “mais ou menos”. Esse exotismo certamente explica o nosso atual desenvolvimento econômico e civilizatório.

Estudos realizados a partir da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD) de 2004 mostram claramente que o dinheiro tem ido para pessoas que estão fora do público-alvo determinado pela lei (enquanto muitos daqueles que estão no conjunto do público-alvo nada recebem). Além disso, no quarto ano do mandato do vosso presidente-candidato Luiz Inácio da Silva (2003-6), as condicionalidades de saúde são mera ficção: nada, absolutamente nada, foi feito nesse campo. Na área da Educação, toda aquela promessa de informatizar o controle da presença escolar se arrasta indefinidamente, com muitas justificativas: formação de cartéis que fazem disparar os preços dos cartões e dos microcomputadores, entraves impostos por licitações complicadas etc. O fato é que a presença escolar continua sendo acompanhada de maneira capenga e pouco confiável. A Lei não tem sido cumprida.
Que governos ajam assim, é algo que já não me surpreende.

O problema é que especialistas e pesquisadores sérios têm analisado os programas sociais à luz do que acreditam ser o certo e o errado e não à luz do que diz a Lei, e, com isso, tendo ou não esse objetivo, acabam por chancelar os programas sociais deste governo. É o caso do economista e sociólogo Professor Doutor Ricardo Paes de Barros (Fundação Getúlio Vargas – FGV) — no Brasil, um dos mais competentes e brilhantes analistas de políticas sociais. Num estudo recente, ele diz, com base na PNAD-2004, que a proporção dos cidadãos que recebem o benefício Bolsa Família e não estão entre os 40% mais pobres do País é de 17%. Ocorre que a Lei não manda atender os 40% mais pobres, mas aqueles que têm renda familiar per capita de até R$ 120. Será então correto usar o corte dos 40% mais pobres ou usar o corte dos que têm renda per capita de até R$ 120? Se o corte de R$ 120 for o utilizado, a proporção dos que recebem os benefícios do Programa Bolsa Família e têm renda superior ao público-alvo pula de 17% para 37%.

A renda do público-alvo foi analisada antes do recebimento dos benefícios, através do artifício de subtrair dela o dinheiro registrado em “outros rendimentos”, a rubrica em que a PNAD aloca os recursos oriundos de programas sociais.

O mesmo estudo critica as aposentadorias especiais a idosos pobres e deficientes físicos pobres, porque 31% dos beneficiários têm renda domiciliar per capita acima de meio Salário Mínimo. Mas, novamente, por que usar este corte se a Lei que instituiu aquelas aposentadorias especiais determinou que os beneficiários sejam apenas aqueles com renda familiar per capita menor do que um quarto de Salário Mínimo? Se o corte utilizado for esse, 60,4% dos beneficiários, e não 31%, têm renda superior ao limite estabelecido em Lei.

Em outro artigo, os Professores Doutores Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho e Samuel Franco exaltam a importância de programas de transferência de renda com condicionalidades na redução da desigualdade registrada no Brasil: entre 2001 e 2004, o coeficiente de Gini caiu 0,024. A rubrica “outros rendimentos”, da PNAD registra a renda oriunda dos programas sociais, e teve um inchaço substancial nas camadas menos favorecidas: em 1999, a proporção de pobres que declaravam ali alguma renda era quase zero e, em 2004, pulou para cerca de 60%. O exercício que os pesquisadores fazem é zerar a renda declarada nessa rubrica e verificar o efeito disso no coeficiente de Gini. “Na ausência dessas transferências, a desigualdade teria passado por uma redução 20% inferior à efetivamente ocorrida”, dizem eles. Outros fatores explicariam a queda na desigualdade: 12% da redução seriam devidos a mudanças nas diferenças de escolaridade entre os trabalhadores, 2% viriam da queda no desemprego e 8% viriam do aumento do Salário Mínimo.

No artigo, os autores concluem, portanto, que é grande a importância de uma rede de proteção social “centrada no Programa Bolsa Família”: “Sua contribuição para a queda na desigualdade foi 2,5 vezes maior que a do aumento do salário mínimo”, dizem os especialistas.

Ocorre que o dinheiro das aposentadorias a idosos e deficientes físicos pobres, um programa sem condicionalidades e com grande desvio de foco, também é declarado em “outros rendimentos”, e é um montante expressivo de recursos: se o governo gastou em 2004 R$ 5,7 bilhões com o Programa Bolsa Família, gastou mais com as aposentadorias especiais — R$ 5,8 bilhões. Enquanto o benefício médio do Programa Bolsa Família em 2004 foi de R$ 68, o valor das aposentadorias nunca é menor do que o salário mínimo — R$ 260 naquele ano. Assim, pode-se chegar a duas conclusões: o papel na redução da desigualdade está bastante exagerado, no caso do Programa Bolsa Família, e subestimado, no caso do Salário Mínimo, embora parte da importância do Salário Mínimo para beneficiários idosos e deficientes venha de um programa mal focado e que não pede nada em troca aos beneficiários.

Mais uma vez fica provado: se as leis fossem cumpridas, este País seria outro. Refiro-me obviamente ao governo, mas os pesquisadores poderiam contribuir se seus estudos refletissem as exigências das leis, para que os programas pudessem ser mais bem julgados. Neste caso, se o governo cumprisse a Lei, aqueles cidadãos de fato necessitados seriam ajudados, com um gasto muitas vezes menor.
E o dinheiro que sobrasse iria para a Educação, o instrumento mais eficaz na emancipação da pobreza e da miséria que campeiam Brasil afora. Basta olhar o próprio estudo dos pesquisadores: se com parcos recursos a Educação já respondeu por 12% na redução das desigualdades, o que não faria com mais?