Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, dezembro 15, 2009

Interpretação discriminatória, arbitrária e inconstitucional

ANCORADO no formalismo jurídico, e decidindo como se fosse apenas um tribunal de quarto grau de jurisdição, e não uma corte constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF) perdeu oportunidade histórica para afirmar a incolumidade do mais importante princípio singular das sociedades abertas - a liberdade de informar - que lhe incumbe salvaguardar em última instância. Prendendo-se a ritos processuais, o que é comum nas instâncias inferiores do Judiciário, o STF arquivou, por 6 votos a 3 - sem que a maioria entrasse no mérito da questão -, recurso apresentado pela diretoria do jornal O Estado de S. Paulo contra o ato do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) que proibiu aquele jornal de continuar publicando informações sobre a “Operação Boi Barrica”, desencadeada pelo Departamento de Polícia Federal. O alvo principal do inquérito é o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado Federal, senador José Sarney de Ribamar (PMDB-AP), e responsável pelos negócios da família Sarney. A censura prévia foi imposta em Julho último, em caráter liminar, a pedido do empresário, que alegou invasão de privacidade.

A RECLAMAÇÂO (recurso jurídico) - sustentava que o TJDF, ao amordaçar o jornal, descumpriu decisão do próprio STF, que em Abril deste ano derrubou a Lei de Imprensa, instituída em 1967 pelo Regime Ditatorial Militar (1964-85), e consagrou o direito irrestrito à liberdade de informar e de ser informado. Na ocasião, a posição do plenário do STF foi inequívoca e deu aos advogados a segurança jurídica que tanto reivindicavam, em matéria de direito da comunicação. "Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário", definiu aquela Corte. Tratava-se, portanto, de fazer valer a sua decisão. Mas o relator da reclamação, ministro Cezar Peluso, relegando para segundo plano a questão maior do princípio constitucional da liberdade de comunicação, entendeu que o instrumento era inadequado porque o TJDF não se baseou na Lei de Imprensa quando acolheu a ação de Fernando Sarney. A lei citada foi a de Interceptações Telefônicas. Votaram com Peluso os ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Eros Grau, José Antonio Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Discordaram dele os ministros Celso de Mello, Carlos Ayres Britto e Cármen Lúcia.

O STF, desse modo, se dividiu em partes desiguais entre os que privilegiaram uma preliminar - a da pertinência da reclamação - e os que focalizaram o tema substantivo das liberdades fundamentais asseguradas pela Constituição Federal do Brasil. "Nada autoriza o juiz a exercer esse poder de censura prévia a nenhum jornal", argumentou, por exemplo, Ayres Britto. Para ele, o TJDF valeu-se indiretamente da Lei de Imprensa, porque essa seria "a única base legal" para a sua decisão. O seu colega Lewandowski disse concordar com ele no mérito - o primado da liberdade de expressão. Admitiu, porém, que não conseguia "ultrapassar a questão preliminar". Numa defesa apaixonada dos direitos fundamentais, pondo a questão dos princípios à frente das tecnicalidades processuais, Celso de Mello qualificou a decisão do TJDF de "discriminatória, além de arbitrária e inconstitucional". Ele considerou "particularmente grave e profundamente preocupante que ainda remanesçam no aparelho de Estado determinadas visões autoritárias que buscam justificar, pelo exercício arbitrário do poder geral de cautela, a prática ilegítima da censura". Antes dele, o ministro Gilmar Mendes tocara no assunto ao afirmar que direitos invioláveis, como o da honra e da privacidade, devem ser protegidos contra "lesão ou ameaça de lesão". Ayres Britto contrapôs que "o artigo 5º da Constituição não fala em ameaça de lesão, não autoriza censura prévia". Mendes insistiu na tese de que "o direito de imprensa suporta limitações", citando o episódio da Escola Base, em São Paulo, que teve de fechar as portas depois que os seus diretores foram expostos na mídia sob a falsa acusação de abusar dos alunos. Ele lamentou que à época a Justiça não tivesse restringido a Imprensa. Retrucou Britto: "Não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso”.

E É JUSTAMENTE esse o problema de fundo do qual o STF deveria se ocupar - a afirmação dos princípios fundamentais da Constituição Federal do Brasil. Ante dele, era absolutamente secundário saber se foi ou não formalmente apropriado o meio escolhido por este jornal para contestar a censura prévia que o atinge há 134 dias. O nervo da questão é o que foi dissecado por Britto. "Não há no direito brasileiro", ensinou, "norma ou lei que chancele poder de censura à magistratura".