Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, maio 31, 2006

Praça de guerra

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Com a aparência de uma medida eficaz de emergência para solucionar a grave crise de segurança pública do País explicitada pelos impensáveis dias de terror vividos pelos paulistas, o Congresso Nacional aprovou mais uma vinculação de verbas orçamentárias. Na verdade foi dado um passo atrás em uma discussão que se travava dentro do governo Luiz Inácio da Silva (2003-6), mais especificamente na equipe econômica (liderada pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles) sobre a real eficácia dessas vinculações. Mais uma vez os políticos fizeram a mímica da solução, deixando o verdadeiro problema para trás.

A Constituição Federal promulgada em 1988, a tal “Constituição Cidadã” (assim batizada pelo saudoso presidente da Câmara dos Deputados, Ulisses Guimarães) fixou os percentuais mínimos de impostos para a Educação em 18% do orçamento para a União Federal e em 25% para os estados, o Distrito Federal e os municípios. Algumas constituições estaduais ampliaram o percentual mínimo para 30% (Piauí, São Paulo) ou 35% (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul). Na área da Saúde, aos estados cabe aplicar 12% da receita própria e 15% dessa receita aos municípios. A União deve investir o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB).

Quando o cidadão brasileiro achava que já tinha visto tudo em matéria de crime organizado, eis que surgiu São Paulo com toda a sua pujança também nesse terreno. Numa escala jamais ousada antes, a onda de terror que varreu a Capital e o Estado de São Paulo neste Maio cinzento deu ao que aconteceu no Rio de Janeiro (RJ) em 2002, quando os bandidos comandados pelo narcotraficante Fernandinho Beira-Mar obrigaram o comércio a fechar as portas, um tímido caráter de ensaio. Em comum, apenas a arma que já se mostrara imbatível no “11 de setembro” carioca: o aparelho de telefone celular.

Ademais, a mesma desorientação das autoridades. Na luta contra o crime, o aparelho de telefone celular é um símbolo. Os bandidos sabem como usá-lo e a polícia não sabe como controlá-lo. Não consegue coibir a corrupção que permite sua entrada nos presídios e não encontra meio legal de bloquear o seu sinal. O resultado é a existência de uma espécie de central telefônica comandando as ações criminosas de dentro dos presÍdios.

No caso de São Paulo, nem sobre isso houve consenso. Enquanto o delegado encarregado das investigações afirmava ser o aparelho de telefone celular “mais perigoso que uma arma” e pedia a intervenção das operadoras, o governador Cláudio Lembo (PFL-SP) dizia ser mais importante monitorar as conversas telefônicas dos presos e controlar a ação dos advogados. E por que só agora discutir isso, se o próprio governo admitiu que havia três semanas já tomara conhecimento do que iria acontecer?

As idéias e discussões fora de hora são típicas desses momentos. Em lugar de providências imediatas e eficazes para vencer o terror, costuma-se oferecer discurso conceitual sobre as raízes da violência, a necessidade dos investimentos em Educação, a natureza da miséria e as condições abjetas em que vive a população carcerária no Brasil. Sabe-se o quanto é importante debater essas questões, mas não com a população refém dos bandidos e a cidade pegando fogo. Não é na hora da repressão que se trata da prevenção.

Aliás, em termos de inadequação, nada como a cena em que, tendo ao lado o ministro de Estado da Justiça Thomaz Bastos, o governador Lembo recusava a oferta de ajuda federal por desnecessária, já que considerava a situação sob controle (nessa altura, corria a informação não confirmada de que teria havido um acordo de cessar-fogo com o chefe da facção criminosa). Ele falando e do lado de fora a realidade: 213 atentados, 137 ônibus incendiados, mais de uma centena de vítimas fatais, das quais 43 policiais e civis.

Por essas e outras, os criminosos estão ganhando a guerra. Modernos, eles atuam em sistema de rede e conexões, unidos sob um comando centralizado. Já o governo federal e os governos dos estados ficam se acusando de cortar verbas do combate à violência, e não conseguem se unir em torno de um projeto comum e articulado, de um sistema único de segurança pública.

Esse tema delicado, especialmente num governo que se gaba de sua política de assistência social, otimizar os gastos do governo, especialmente as despesas sociais, vem sendo tratado com cuidado por setores do governo mais preocupados com a melhoria da gestão pública.

Há a convicção de que, do modo como são feitas no País, as vinculações inviabilizam a atuação do governo, que tem um orçamento limitado pela necessidade de fechar as contas públicas com um superávit primário mínimo de 4,25% do PIB. A queixa é de que não há mecanismos para acompanhar a aplicação dessas verbas, nem a eficiência com que são utilizadas.

O ex-secretário do Tesouro Nacional (TN), o economista Joaquim Levy, costuma dizer que a vinculação das verbas é inconsistente pois, não havendo um acompanhamento, aquela verba passa a ser “um direito divino”. Levy reclama que nunca foi criado “um real mecanismo de controle” sobre como a verba é gasta, e tinha como objetivo controlar essas despesas de caráter continuado, especialmente para garantir que o dinheiro tenha sido bem gasto.

Com relação à Saúde, por exemplo, falta há anos uma Lei Complementar, que deveria ser revista a cada cinco anos, exatamente para calibrar a verba com as necessidades.

A discussão que se desenvolvia dentro do governo sobre a desvinculação das verbas orçamentárias na verdade era uma discussão sobre a organização do Estado, suas instituições e políticas fiscais, com o objetivo de dar maior agilidade à política econômica. Mas a discussão vinha gerando uma reação crescente, de setores sociais que têm verbas garantidas constitucionalmente, e provavelmente já não é mais hoje uma prioridade nem mesmo da equipe econômica.

Se for aprovada mais uma vinculação de verbas, desta vez para a segurança pública, ficará cada vez mais longe a possibilidade de experimentarmos um sistema de gestão semelhante ao que está sendo cada vez mais utilizado pelos países civilizados e desenvolvidos, e que determinam metas a serem atingidas pelos gestores públicos.

A idéia de transformar a contabilidade pública em tão transparente quanto a de uma empresa privada, visa a busca da qualidade do serviço público. O presidente da Bolsa de Valores de São Paulo, Raymundo Magliano, que está preparando um trabalho sobre o choque de gestão que está sendo dado em países como a Austrália e a Nova Zelândia, diz que é preciso convencer os políticos de que, acabando com o desperdício, haverá mais verba no orçamento para os programas sociais.

Experiência de gestão do estado nos moldes de uma empresa privada é a nova bossa entre nós, mas é uma tendência crescente nos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a entidade que reúne os países desenvolvidos. Austrália e Nova Zelândia foram os pioneiros, no final da década de 1980, e a nossa Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), criada há exatos 11 anos, foi baseada em suas experiências.

Uma pesquisa com base no banco de dados de práticas e procedimentos de orçamento do Banco Mundial (Bird) e a OCDE de 2003, em 28 dos 30 países membros, concluiu que a grande maioria inclui dados de desempenho não-financeiros em seus orçamentos. E o desempenho é continuamente monitorado no ministério competente. Num sistema assim, o que seria discutido no orçamento seriam os objetivos do Estado na Saúde, na Educação, na Segurança, e a partir daí seriam alocados os recursos necessários para atingir as metas acordadas com a sociedade.

Evidentemente nem sempre as metas numéricas atingidas significam que o problema tenha sido resolvido, como bem demonstra o caso de São Paulo. O ex-governador daquele estado e pré-candidato à Presidência da República Geraldo Alckmin (PSDB-SP) montado em uma série de estatísticas que mostram sucesso no combate ao crime no Estado, acaba de ver rolar por terra uma de suas melhores vitrines na campanha presidencial deste ano.

Se for verdade que ele conseguiu reduzir em 43% no Estado de São Paulo, e em 52% na Capital, o número de homicídios entre 1999 e 2005, os dias de terror que São Paulo viveu neste Maio cinzento revelam que a feia e violenta realidade do crime organizado transformou as estatísticas oficiais em uma numeralha sem nenhuma significação.

Mas também é evidente que simplesmente garantir uma verba para alguns setores, sem acompanhar a execução dos programas nem exigir que sejam atingidos os objetivos compatíveis com as necessidades da sociedade, é facilitar o desperdício e favorecer o corporativismo. É o que o Congresso Nacional fez de maneira simplista ao aprovar a vinculação de verbas para a segurança pública.

Por mais que soem abjetas ou ultrajantes, pois ainda deve haver cadáveres a sepultar, as avaliações sobre os efeitos eleitorais da carnificina paulista estavam na ordem do dia ontem. O baú das receitas legislativas milagrosas também foi aberto. E a nenhuma conclusão chegavam os que discutiram tão acaloradamente a conveniência ou não da negociação com a organização criminosa — não assumida pelo governo paulista — que pôs fim à carnificina paulista.

Lideranças do Partido da Frente Liberal (PFL) e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), admitindo que o episódio pode ferir gravemente o candidato presidencial Geraldo Alckmin, buscaram estratégias para repartir o prejuízo com o governo federal. Acham que os governistas arranjaram uma boa munição, e que embora estejam agora mantendo o recato político, vão usá-la na campanha eleitoral deste ano.

Políticos têm sempre a presunção de saber o que o povo pensará. A respeito da (in) segurança pública, há muito tempo as pesquisas dão conta de três pontos estabelecidos pelo senso comum. Primeiro, que a situação só vem piorando (foi o que disseram 78% na última pesquisa CNT/Sensus). Segundo, que o tema deveria estar entre as mais altas prioridades dos governantes e candidatos. Terceiro, que a responsabilidade é de todos os governantes.

Mas a candidatura Alckmin é que leva a pior e disso peefelistas e peessedebistas não tem dúvida. O candidato se reuniu com peessedebistas e peefelistas no Senado Federal. Alguns peefelistas acham que ele errou, demorou a falar do acontecido, e quando falou foi evasivo. Criticou a Justiça e gabou-se de ter enfrentado com êxito duas rebeliões do gênero — mas de proporções infinitamente menores — quando era governador de São Paulo. Mas Alckmin deixou o governo há 60 dias apenas, diz o líder do PFL na Câmara, deputado Rodrigo Maia (PFL-RJ). O governo estadual é de coalizão, disse José Carlos Aleluia (PFL-BA), lembrando que os secretários de Administração Penitenciária e de Segurança Pública de Alckmin foram mantidos por Lembo. Talvez a delicadeza eleitoral esteja no fato de Alckmin ter se jactado tanto de seus feitos na área de segurança, o que se revela agora uma ilusão.

A estratégia dos partidos da Oposição é dividir a bola com o vosso presidente-candidato da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP), destacando o atraso na construção dos presídios federais, o corte de verbas para segurança e a ausência de um plano estratégico unindo a federação. Mas disso também o povo sabe. E sabe que a omissão federal vem de longe.

O baú das soluções legislativas de emergência foi aberto pelo presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que acionou comissões para aprovar logo projetos encalhados sobre segurança. A Câmara dos Deputados fez o mesmo mas muitos deputados dizem que isso só reforça a idéia de que o Congresso Nacional com seu conceito já tão abalado é devedor de leis que resolveriam o problema. O líder do Partido Democrático Trabalhista (PDT), na Câmara dos Deputados, e ex-ministro de Estado das Comunicações Miro Teixeira (PDT-RJ), diz que o problema não é de falta de leis, é de implementação das que já existem. “Não entendo a bizarra discussão sobre uso de telefone celular nas penitenciárias. É claro que isso é delito e a lei permite sua punição, bem como aos que os introduzem nos presídios. Discute-se, ainda, o que fazer quando as concessionárias telefônicas já dispõem de equipamento bloqueador eficaz. E o que dizer da discussão sobre a legalidade de grampear ligações de criminosos? O sigilo não protege atos ou equipamentos ilegais”.

Bizarra também é a oposição da Ordem dos Advogados dos Brasil (OAB) à revista de advogados, quando é tão sabido que alguns atuam como pombos-correios dos chefes do crime. Todos os cidadãos se sujeitam a passar por detectores de metal em aeroportos, órgãos públicos e outros locais. Em se tratando de presídios, a necessidade da revista é indiscutível, e para todos.

Por fim, discutiu-se muito esta semana no meio político a tal negociação com a facção. Negociar é reconhecer a força do inimigo. Mas baixar-lhe a crista no meio da insurreição poderia levar a um novo Carandiru, diziam outros. Vidas estavam correndo perigo, era preciso deter a carnificina. Mas agora que o pior passou, não basta contar os mortos.

Quanto às pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República este ano; a última pesquisa encomendada (para consumo interno) pelos marqueteiros da campanha de Geraldo Alckmin (e não publicada) pelo Instituto de pesquisa Vox Populi mostra aos analistas especializados uma clara divisão do eleitorado brasileiro em três blocos. Um terço é composto por eleitores tradicionais do lulismo, que votaram em Luiz Inácio da Silva nas quatro eleições que disputou e devem votar novamente. Na outra ponta, há outro terço de eleitores que nunca votou nem votará em Luiz Inácio da Silva, os anti-lulistas. E por fim, outros 30% de eleitores que já votaram nele em 2002. São lulistas eventuais. É destes que Geraldo Alckmin está no encalço, viajando pelo País. Porém, o candidato da Oposição não vai conquistá-los só desconstruindo a figura do presidente-candidato Luiz Inácio da Silva, mas convencendo-os de que ele, Geraldo Alckmin, é a melhor alternativa de gestão para o País.