Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, dezembro 14, 2010

Perdendo as estribeiras mais uma vez

O MESMO Luiz Inácio da Silva (PT-SP) que aconselhou um repórter do Jornal O Estado de S. Paulo (o Estadão) a fazer psicanálise para se tratar da "doença do preconceito", revelou ter dito de si certa vez algo que deveria levá-lo ao divã do terapeuta mais próximo. Não fosse a inconfidência, a sua grosseria com o colega jornalista Leonencio Nossa, setorista de política do Estadão na Presidência da República, mereceria ser largada no aterro onde se amontoam os incontáveis rompantes, bravatas e despautérios do mais prolixo dos governantes brasileiros. Mas o encadeamento das coisas obriga a revolver as palavras do vosso presidente da República, em consideração ao interesse público.

TAIS cenas constrangedoras se passaram quando “O-CARA!” visitava as obras da hidrelétrica de Estreito, no Estado do Maranhão, para o fechamento simbólico da primeira das 14 comportas da usina. Perguntado pelo repórter se a visita era uma forma de agradecer o apoio da oligarquia Sarney ao seu governo, ele perdeu as estribeiras. Embora o presidente do Senado Federal, o senador José Sarney (PMDB-AP), seja o patriarca do clã que sabidamente controla a vida política maranhense há cerca de meio século e embora seja também notória a sua sintonia com os interesses do lullismo - e vice-versa -, vosso guia reagiu com indisfarçada hostilidade.

A PERGUNTA "preconceituosa", investiu, demonstraria que o jornalista não teria aprendido que o Senado da República é uma instituição autônoma e que, ao se eleger e tomar posse, todo político "passa a ser uma instituição". "Sarney não é meu presidente", emendou. "É o presidente do Senado deste país”. “O-CARA!” domina com maestria o tipo de mentira que consiste em omitir uma parte, a mais importante, da verdade. No caso, o pacto de mútua conveniência entre ambos - que se sobrepõe ao caráter institucional das relações entre dois chefes de Poderes.

QUE o diga a seção regional do Partido dos Trabalhadores (PT) do Maranhão, obrigada este ano a desistir da candidatura própria naquele Estado em favor da reeleição da governadora Roseana Sarney (PMDB-MA). Foi ao pai que Luiz Inácio das Silva se dirigiu em dada ocasião para transmitir uma ameaça ao Congresso Nacional. Segundo a história que “O-CARA!” contou na sua fala de improviso em Estreito (MA), no decorrer da crise do Mensalão empreendido pelo delubiovalerioduto, em 2005, pediu que Sarney advertisse os parlamentares da Oposição de que, "se tentassem dar um passo além da institucionalidade, não sabem o que vai acontecer". Porque "não é o Lula que está na Presidência, mas a classe trabalhadora".

OU, MAIS precisamente, porque ele é "a encarnação do povo". Não há o mais remoto motivo para duvidar de que isso é o que ele enxerga quando se olha ao espelho. Luiz XIV teria dito que "o Estado sou eu". Era, de toda sorte, uma constatação política - e a mais concisa definição que se conhece do termo autocracia. Mas nem o Rei Sol, que via a sua onipotência iluminando a França, tinha a pretensão de encarnar os seus súditos. Não ousaria dizer "o povo sou eu". Em psiquiatria há diversas denominações para o que em linguagem leiga se chama mania de grandeza.

LUIZ Inácio da Silva disse ainda que de início tinha medo do que lhe poderia acontecer à luz de um passado que incluía o suicídio de Getúlio Dornelles Vargas (1954), a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck de Oliveira, a deposição de João Goulart (1964), a renúncia de Jânio Quadros (1961) e o impeachment de Fernando Collor de Mello (1992). A julgar por sua versão, o migrante que passou fome e privações e refez a vida sem renegar as suas origens seria um candidato natural a engrossar a lista dos governantes brasileiros apeados do poder de uma forma ou de outra, no que seria uma interminável conspiração dos descontentes. Mas "eles", teria dito naquela conversa com Sarney, "vão saber que eu sou diferente".

O QUE espanta, além da teoria encarnatória, são as circunstâncias que levaram “O-CARA!” a invocar alguns dos momentos mais turbulentos da história nacional. Em 2005, a Oposição não conspirava para "dar um passo além da institucionalidade" nem o País estava convulsionado por um confronto ideológico que se resolveria pela força. Os brasileiros, isso sim, estavam aturdidos com as evidências de que o lullismo usava dinheiro que transitava pelos desvãos da política e do governo para comprar votos na Câmara dos Deputados - o Mensalão que levou às barras da Justiça quatro dezenas de operadores associados ao governo petista. Vosso guia não estava nem um pouco preocupado com as instituições. Queria dar dimensão histórica ao que não passava de um caso de polícia. Encarnou uma mistificação.